«(...) Actualmente, em Portugal, no sentido contrário, instaurou-se, por exemplo, a questão de distinguir os géneros ("senhores e senhoras") e há esse cuidado, além de haver expressões idiomáticas que hoje já não se podem usar. (...)»
A professora Margarita Correia reflecte, em entrevista ao Público, sobre a censura e o impacto que o controlo da linguagem pode ter na ciência e na democracia. Numa altura em que a língua é minada por movimentos populistas e autoritários, Margarita Correia, professora auxiliar da Faculdade de Letras de Lisboa e coordenadora do Portal da Língua Portuguesa, reflecte sobre o panorama mundial e português, a censura e o impacto que o controlo da língua (e da linguagem) pode ter na ciência e na democracia.
Como vê o que está a acontecer nos EUA e de que forma as palavras podem ser usadas para mascarar a ideologia de ciência?
Parece-me um absurdo disparate [a proibição de certas palavras pela Administração Trump), uma vez que está comprovado que não é por medidas legislativas que se muda a língua. É evidente que há aspectos específicos em que a lei pode intervir sobre a língua, como é o caso da ortografia, mas,
tirando isso, não, porque a língua é das pessoas que a falam. Depois, as pessoas têm, de facto, muito medo das palavras e isso é uma forma de censura como outra qualquer. Neste momento, isso poderá ter algum efeito no discurso oficial, mas, por exemplo, quando Bolsonaro saiu [do Governo do Brasil] as coisas mudaram e quando Trump sair as coisas vão mudar também. É muito próprio dos regimes populistas e autoritários mexerem na língua.
Em Portugal, também houve censura no Estado Novo ...
A censura do lápis azul era diferente porque aquilo que era censurado eram sobretudo as ideias e não tanto as palavras. Claro que havia palavras que não se podiam usar, mas tratava-se especialmente da censura das ideias. Actualmente, em Portugal, no sentido contrário, instaurou-se, por exemplo, a questão de distinguir os géneros («senhores e senhoras») e há esse cuidado, além de haver expressões idiomáticas que hoje já não se podem usar. Além dos casos que já são antigos de como designar as pessoas que têm pele mais escura, existe toda uma série de expressões que são consideradas ofensivas.
Palavras como ultramar e Descobrimentos adquiriram uma conotação negativa. Como encara a evolução da língua?
Isso é normal. Quando eu vim para Portugal, em 1971, havia os "aleijados", depois passaram a ser os "deficientes" e hoje são "pessoas com necessidades especiais" ou "portadoras de deficiência". Tudo isto é sinal de que as sociedades vão evoluindo e vão tentando falar mais eufemisticamente. No caso dos regimes populistas é exactamente o contrário, trata-se de impor uma regra mais dura.
De que forma as palavras proibidas e o controlo da língua podem ter impacto na ciência, nomeadamente nas ciências sociais e humanas?
Tem impacto em toda a ciência, na verdade. Nas ciências sociais e humanas é mais visível, mas é curioso porque as ciências sociais e humanas começam a ser as primeiras a adoptar este tipo de linguagem tida comonão-discriminatória. Não consigo avaliar os efeitos [na ciência], mas se eu não puder expressar-me com propriedade sobre determinados aspectos a comunicação cientifica não vai ser tão eficaz.
Como antevê o futuro numa altura de ascensão dos regimes populistas e extremistas?
Uma coisa é invocar critérios supostamente científicos (que de científicos não têm nada) e falar sem fundamentação e sem ter dados concretos, alegando que há estudos e que está provado – isto é «o pão nosso de cada dia». Ao mesmo tempo que querem recorrer à ciência para disfarçar as suas ideologias e algumas medidas menos populares, esses são os mesmos movimentos políticos que desprezam a ciência – vimos o que se passou com a covid-19. O discurso é até contraditório porque em alguns casos a ciência serve como chapéu, mas noutros é atacada em favor da crença.
Está preocupada com o futuro?
Estou muito preocupada. Acho que as pessoas vão deixar-se influenciar porque têm muito pouco sentido crítico. Não conseguem, na maior parte das vezes, vislumbrar o que é que está por trás de determinadas opções e expressões. Tenho muito medo de que esses movimentos populistas possam atingir os seus objectivos, pelo menos temporariamente.
Entrevista a linguista Margarita Correia incluída em 5 de março de 2025 no número comemorativo do 35.º aniversário do jornal Público. Manteve-se a norma ortográfica de 1945,, conforme o original.