O texto de Ferreira Fernandes é bem sintomático de como actualmente a causa das línguas chamadas minoritárias anda a perder a simpatia da opinião pública. Segundo este jornalista português, as crianças galegas, catalãs, bascas e cabo-verdianas arriscam-se a ficar em desvantagem por serem educadas nas línguas tradicionais das regiões ou países em que vivem. Lendo o texto, parece que é porque os “miúdos” (como diz o jornalista) vão ficar fora da I Divisão Mundial das Línguas. Para quem quiser ter um Cristiano Ronaldo ou um David Beckham numa casa galega, até se entende a ansiedade dos pais, em pesadelo com o perigo de os filhos passarem à II ou à III divisão das línguas. Mas falar uma língua ou duas ou muitas não é bem o mesmo que jogar futebol. Aprender galego ou cabo-verdiano desde o berço, passando depois pelo jardim-de-infância e pela escolarização subsequente, não é de certeza impedimento para se aprender castelhano ou português, em paralelo ou um pouco mais tarde. Jogar em vários clubes é insólito e parece absurdo; mas falar várias línguas é possível e tem sentido social e pedagógico.
Depois, Ferreira Fernandes repete abreviadamente o que há algumas semanas, em Espanha, o Partido Popular, por exemplo, e alguma imprensa local têm afirmado acerca do hino galego e da introdução do galego no ensino pré-primário. Que a Galiza se vai tornar ainda mais paroquiana e menos cosmopolita; que as chamadas “galescolas” vão fomentar o nacionalismo galego tal como aconteceu com as escolas bascas (“ikastolas”); que tudo se deve ao radicalismo do Bloco Nacionalista Galego (partido galego que faz parte da coligação à frente do governo autonómico galego); que ensinar o hino da Galiza é ensinar um hino “nacional-socialista”; que se vai perder o registo culto do castelhano, e as famílias galegas mais humildes vão sofrer com isso. Tudo questões políticas e sociais muito sérias, que só fazem parte da história e do quotidiano do país vizinho. Ou não?
Já se sabe que em Portugal, talvez principalmente em Lisboa, há a tendência para ver a Espanha como um bloco político e cultural de que se gosta ou se desconfia. Agora até já se aceita que vai sendo tempo de aprendermos decentemente castelhano (tomara que com o português fizessem o mesmo do outro lado da fronteira), com tanta aplicação como já encantámos em francês e hoje competimos em inglês. Mas é inegável que há um património linguístico e cultural que nos prende a uma outra Espanha — a das regiões e das pequenas nacionalidades. Essa ligação, envergonhadamente reconhecida e muitas vezes esquecida, faz-se sobretudo com a Galiza. É aqui e no Entre-Douro-e-Minho que o português encontra a sua origem, e talvez valha a pena perceber um pouco melhor o que se passa hoje com o galego e os galegos, num mundo a debater-se entre localismo e globalização. Por exemplo, pode interessar saber que a letra do hino galego é do poeta Eduardo Pondal (1835-1917), autor inspirado por uma visão histórica eivada de celtismo, variante estética e cultural romântica que é necessário avaliar criticamente, mas que deixou uma marca importante na cultura galega. É capaz de ser importante saber que, após a Guerra Civil Espanhola, o uso do galego foi reprimido, à semelhança do basco e o catalão; e que, em Espanha, o espírito centralista procurou (muito logicamente) cercear a expressão noutras línguas que não o castelhano, ilustrando o que Nebrija já preceituava nos finais do século XV: «... siempre fue la lengua compañera del Imperio.»
Em suma, é isto que mexe com Ferreira Fernandes: se o império espanhol perde em casa, então o império português pode perder lá fora. E que têm os cabo-verdianos com isso? Venha o crioulo, porque não estamos mesmo a falar de futebol.