O adjectivo - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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O adjectivo

O adjectivo? Que horror

quando não é incisivo
quando atira para o vago
o pobre substantivo

ou o circunda de um halo
de um falso resplandor,
em que o ouro utilizado
não é ouro é só dourado!

O sol assim captado
é sol, mas sol de teatro,
ouro em falsete, luz barata,
e no prego não dá nada,

que o prego não acredita
(senão já estava falido)
nesse ouro sem quilate
que usam a valdevina

e o poeta que se orna
(que orneia, melhor diria)
de luzidias mentiras,
de poética poesia.

Disse pouco do que queria
na parte que antecede.
Se é discursiva, a poesia
também não serve...

Voltando ao adjectivo
(nada tenho contra ele):
é melhor ficar despido,
cosido co'a própria pele,

do que pedir emprestada
a piedosos enchumaços
aquela largura de ombros
que nos faz ginasticados,

quando, em verdade, não temos
mais ginástica do que essa
em que somos atletas
e que se resume apenas

no aguentar alegre
do peso quotidiano
(pode ser que para o ano
a terra nos seja leve).

Tal como do mal o menos
-e nesta regra redijo-
antes quero sóbrios termos
do que fingir que sou rico...

Fonte

Poema incluído no livro Abandono Vigiado (1960), in antologia Poesias Completas, Imprensa Nacional – Casa da Moeda, Lisboa.

Sobre o autor

Alexandre O'Neill (Lisboa 1924 – Lisboa, 1986) foi poeta e um dos fundadores do Grupo Surrealista de Lisboa. Desvincula-se do grupo a partir de Tempo de Fantasmas (1951), expressando o seu desagrado pelo rumo decadente em que o surrealismo mergulhara. A publicidade foi a maneira menos trabalhosa de ganhar sustento que o poeta encontrou, apesar de não criar nenhum vínculo afetivo com esta profissão. Fez da pátria e da crítica os seus temas mais constantes na poesia, editando, assim, A Ampola Miraculosa (1948), Poemas com Endereço (1962), Feira Cabisbaixa (1965), Portogallo Mio Rimorso (1966), Uma coisa em forma de assim (1985).