Texto transcrito do semanário Expresso do dia 6 de maio de 2016 sobre divergências entre Governo e Presidente da República à volta do Acordo Ortográfico.
[Ver também: Acordo Ortográfico sob polémica presidencial]
É a primeira desavença aberta entre Governo e Presidente da República. Na semana em que se comemorou o Dia da Língua Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa foi o protagonista ao reabrir a polémica à volta do Acordo Ortográfico (AO). Assim que chegou a Moçambique – país que com Angola não ratificou o tratado –, assumiu que, em funções institucionais usa o AO, mas como cidadão escreve como aprendeu nos bancos da escola. E acrescentou: «Estamos à espera de que Moçambique decida. Se decidir que não, mais Angola, é uma oportunidade para repensar essa matéria». Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros, não esclarece se foi surpreendido por Marcelo, mas garante que o AO está em vigor e que o Executivo vai esperar «serenamente» pelas ratificações em falta.
As declarações do Presidente causaram perplexidade entre os socialistas, para mais tratando-se de um tratado internacional. A deputada e antiga professora de Literatura Portuguesa, Edite Estrela, assumiu, em declarações ao Expresso, a crítica. Sublinha que Angola e Moçambique não ratificaram o AO, não por razões científicas, mas financeiras. É preciso mudar manuais escolares, adaptar os documentos oficiais e, segundo a ex-eurodeputada, os governos destes países nunca consideraram a nova grafia «uma prioridade». Lembra ainda que as crianças que «frequentam hoje o 2.º ciclo de escolaridade nunca escreveram de outra maneira e apenas conhecem o português do Acordo». E foi clara: «Ouvi com surpresa as declarações do sr. Presidente da República. Há funções onde não é possível fazer a separação entre o detentor do cargo e a condição de cidadão.»
Um dos principais defensores do acordo concorda. «Há todo um trajeto feito e em boa parte consolidado, mesmo que os opositores do AO não o queiram reconhecer. Nas escolas, na comunicação social, na atividade editorial, na administração pública o AO já é largamente usado, sem sobressaltos que se conheçam e com a ajuda de abundantes ferramentas disponíveis. A este propósito, valerá a pensa pensar o que acha o Governo, porque lhe cabem funções executivas que acha o Governo, porque lhe cabem funções executivas que lidam com questões práticas que a aplicação do AO coloca», disse ao Expresso Carlos Reis, professor na Universidade de Coimbra.
No mar e no deserto
«A língua é minha pátria/ E eu não tenho pátria, tenho mátria/ E quero frátria», avisou Caetano Veloso na sua `Língua'. Idioma sem dono, mas com mãe e falado por irmãos, mesmo que sem os mesmos pais ou com traços étnicos distintos. O dilema de querer-se grande, mas ser-se uno. Este ano, 58 países encontraram tempo e espaço para realizar 20o ações sobre o Dia da Língua Portuguesa. Da Argentina à Austrália, do Botswana à Bulgária, Finlândia, Paquistão e Tailândia, passando pelo Zimbabwe. O Instituto Camões sublinha que mais de 261 milhões de pessoas falam português e que deverão ser 380 milhões os falantes em 2050. Mas se não é surpresa o português falado no Brasil ou em Angola, já se abrem os olhos com os 946 alunos da rede oficial de ensino básico da Suazilândia que têm português no currículo, os 43 estudantes universitários que se debruçam sobre as concordâncias verbais na Geórgia e os 144 egípcios que tocam o céu da boca com a língua em busca da pronúncia correta. É pouco. O ministro dos Negócios Estrangeiros encomendou ao Camões o levantamento dos cursos de português ou cultura lusófona sem apoio oficial. Num mês, descobriu-se que 16 universidades no Reino Unido e 30 na Alemanha têm cursos, muitos deles "livres", para os interessados em falar o idioma, sem direito a graduação curricular. «Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões», cantou o músico brasileiro. Roçar não é copiar. E porque expansão deve ser sinónimo de português, torna-se mais premente o debate reaberto pelo Presidente, cidadão que assumiu preferir o português pré-acordo, abrindo espaço para a recuperação de distintos sotaques e grafias. «Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó/ O que quer/ O que pode esta língua?». É falar para ver.
Texto transcrito do semanário Expresso do dia 6 de maio de 2016.