Concordo que o Acordo Ortográfico (AO) de 1990 precisa de ser aperfeiçoado. Na adaptação ao novo AO do Prontuário da Texto em elaboração, concluí que há excesso de incoerências, decisões não suficientemente sedimentadas e, até, erros técnicos no texto.
A verdade, porém, é que o trabalho assinado em 1990 consegue, numa primeira aproximação, o objetivo fundamental pretendido de se ter uma base de partida para a elaboração dum dicionário comum para toda a lusofonia (4.4 das Notas Explicativas). Deve também não se esquecer o processo evolutivo próprio da língua. A Reforma de 1911, profundamente estudada, teve alterações anos depois; a Norma de 1945, muito bem estruturada para o português europeu, foi posteriormente alterada nalguns pormenores.
Concordo, e sempre tenho defendido, que só teremos uma língua comum quando houver um Vocabulário Comum, base para que se realize o 4.4 acima indicado (implícito, portanto, no espírito do Acordo Ortográfico de 1990). O que aconteceu foi que a redação pouco clara do 2.º do Preâmbulo do AO permitiu a interpretação de que o Vocabulário Comum nele referido se destinava exclusivamente à terminologia científica e técnica, nada impedindo, portanto, que nos termos comuns o Acordo entrasse em vigor sem tal Vocabulário exigido. Foi com este pretexto que o Brasil decidiu avançar com o novo AO depois de ter conseguido o apoio de São Tomé e de Cabo Verde. A sua enorme projeção de BRIC estava a exigir já uma língua universal. Lembremos que podia ter decidido designá-la por língua brasileira.
Eu compreendi o dilema brasileiro num simpósio sobre a língua em que estive com o Professor Evanildo Bechara, da Academia Brasileira de Letras. Pedi só que esperassem por nós, e muito grato fiquei por os brasileiros desejarem continuar a chamar portuguesa à sua língua. Depois disso, ante a nossa hesitação, o Brasil não pôde esperar mais e acabou por surpreender rapidamente com um Vocabulário monumental de 350 000 entradas para o novo AO, pondo simultaneamente em vigor o Acordo em 2009 (com uma moratória de só 2 anos...). Hoje penso que, se o não tivesse feito, talvez o AO ainda estivesse na gaveta, onde permaneceu em jazida quase 20 anos...
Desde essa altura, no clamor do nosso atraso, de que fui um dos mais inconformados, apareceram finalmente publicados também vocabulários satisfatórios em Portugal. As últimas notícias indicam-nos que o IILP pensa ter um Vocabulário Comum em 2014. Como terá muitas variantes do universo da língua, o trabalho não será fácil. Penso que o país que não colaborar nesse Vocabulário não se poderá depois queixar de ficar à margem da língua comum.
Não concordo que se diga que o novo AO ainda não está em vigor em Portugal. Está nos termos do Aviso 255/2010 de 13 de setembro publicado no Diário da República, 1.ª série de 2010-09-17, com uma moratória prevista de seis anos, nas quais as duas grafias (1945 e 1990) podem coabitar.
Ora é esta moratória que permite a liberdade cívica daqueles que escrevem ainda com a antiga ortografia. Mas essa liberdade acabará passado o prazo da moratória. E esses não tenham dúvidas: não vão conseguir travar um processo que a consciência coletiva do país sente ser necessário para a defesa planetária da língua portuguesa.
Não concordo que se considere sem valor, agora, a decisão do Governo anterior em pôr já em vigor nas escolas e na administração o novo AO. O atual Governo não decidiu o contrário, e, portanto, não é legítimo civicamente ignorar essa determinação. Com a ressalva de que enquanto não houver um Vocabulário Comum são aceitáveis sugestões para o aperfeiçoamento desse Vocabulário.
Não concordo que, sob o pretexto de discordância com algumas decisões do ILTEC, se menospreze o imenso trabalho que apresenta com seu VOP gracioso. Eu próprio tenho lamentado que o ILTEC siga a linha geral dos outros Vocabulários (e que vem do projeto recusado e 1986) de suprimir sempre os hífenes nos compostos ligados por preposição (excluindo espécies), mesmo nos casos aparentes (figurado, por exemplo). Mas afora este pormenor, devido ao qual me desliguei de consultor do projeto, devo reconhecer que o trabalho é altamente meritório, com elevado valor linguístico e respeitador da índole da língua (não posso dizer isto em todos os outros vocabulários). Sobretudo, no estudo aprofundado do novo AO, a que tenho sido obrigado para a adaptação do Prontuário da Texto, concluí que a minha referência de base é mesmo o ILTEC, em particular porque me ajuda no critério que adotei de me aproximar já da língua comum. Estou tanto à vontade para o elogiar hoje, como estive no passado para o criticar.
A profusão de variantes com a consoante etimológica, nas sequências, que o Brasil conserva e o ILTEC regista, aparentemente sem interesse para quem deseja o país subordinado ao critério rígido fonético, são para mim uma grata libertação dessa amarra à "foneticofilia". E não se trata de saudosismo ou xenofobia, mas do reconhecimento de que a etimologia tem virtudes. Por um lado, permite, na diferenciação gráfica, desfazer homofonias suscetíveis de ambiguidades (ex.: óptica/ótica, corrector/corretor, espectador/espetador, etc., etc.). Por outro, altamente significativo e que parece não ter sido devidamente ponderado no Acordo de 1990, a etimologia une os falantes na sua diferente prolação, ao passo que o critério fonético cego corre o risco de paradoxalmente os dividir ainda mais na escrita, contrariando o objetivo fundamental do novo AO. Parafraseando uma frase bíblica, a norma deve servir a língua e não a língua servir a norma.