« (...) Quem me lê, sabe do que tenho falado ao longo destes anos, e um dos temas é necessariamente o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Há quem ache que falo demasiado do assunto e quem entenda que falo pouco (...).»
Directo ao assunto: à milésima crónica, eis-me a escrever de novo acerca do Acordo Ortográfico. E quando escrevo “milésima” é mesmo em sentido literal, já que esta é a crónica número mil (entre os milhares de textos que escrevi no Público desde a sua fundação) na série iniciada em Fevereiro de 2007 sob a designação “Em Público”. Quem me lê, sabe do que tenho falado ao longo destes anos, e um dos temas é necessariamente o Acordo Ortográfico de 1990 (AO90). Há quem ache que falo demasiado do assunto e quem entenda que falo pouco. Pois bem: em nome do rigor, fui ver. Em mil crónicas, ele foi tema de 145, contando com a de hoje. Nelas, percorri tudo o que o dito acordo me suscitava, desde uma fundamentada rejeição (partilhada por muitos cidadãos onde o português é língua oficial) até aos erros crassos, incongruências, malabarismos, promessas falsas e demagogias fáceis que o texto difundia e incentivava, para promover “fiéis” e cativar os incautos que viam nele uma luz de futuro; não era, nunca foi, e, pelo que vemos ainda hoje, é mais uma excrescência do passado. Mas vamos, então, ao que nos traz de volta ao tema.
Foi antes do Dia Mundial da Língua Portuguesa, que aliás decorreu com a animação do costume em 51 países (Camões dixit, não o poeta mas o instituto), com um maior número em Espanha e até na ocupada Olivença, onde voltou a ser celebrada para gáudio dos que mantêm acesa a chama da cultura portuguesa naquelas paragens. A princípio, parecia a repetição de algo já ouvido: um deputado angolano, Paulo de Carvalho (nada que ver com o homónimo cantor português), defendeu que o AO90 devia ser revisto. O Jornal de Angola, num texto assinado por Yara Simão, titulava, na sua edição de 17 de Abril: “Deputado quer revisão do Acordo Ortográfico.” Não era “rasgar” o acordo, esclarecia, mas sim revê-lo, rectificá-lo, para, dizia, “considerar uma série de aspectos de natureza antropológica, sociológica e linguística, que terão sido simplesmente ignorados, dando a impressão de haver clara subalternização com relação à ‘periferia’. É contra essa ideia de subalternização que as organizações da sociedade civil, onde se incluem as Academias de Letras e Academias de Ciências, os académicos, escritores e jornalistas, se insurgem.»
Se Paulo de Carvalho fosse um mero representante de Angola, isto não era novo. Argumentos deste tipo foram usados por entidades angolanas, até com maior contundência ao longo dos anos, justificando o facto de Angola, Moçambique e a Guiné-Bissau não terem ratificado o AO90. Só que Paulo de Carvalho é o presidente da Comissão de Língua, Educação, Ciência e Cultura da Assembleia Parlamentar da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) e falava no decurso de uma reunião que tinha a ratificação do AO90 como tema central. Bom, mas ele falou no dia 16, a reunião prosseguiria no dia seguinte e ignorava-se se haveria consenso neste tema.
Soube-se depois. No dia 17, a agência Lusa difundiu uma notícia dizendo que «a Assembleia Parlamentar da CPLP chegou esta quarta-feira a consenso sobre a necessidade de retificações [sic] ao Acordo Ortográfico de 1990, por constatar que o documento ‘continua a gerar muita controvérsia e confusão’ nos Estados membros da organização lusófona.» A notícia teve eco em órgãos de comunicação como o Observador, a Visão (ambos no dia 17), a Forbes África (dia 18), a RTP África (que lhe dedicou 2 minutos no dia 19) e o Tribuna de Macau (dia 22). Mais tarde, no dia 6 de Maio, a Lusa voltou ao tema, desta vez inquirindo o primeiro-ministro de São Tomé e Príncipe quando este, na véspera (dia 5), participava nas celebrações do Dia da Língua. E o que disse Patrice Trovoada? Que sim, que a “língua é dinâmica” e que “é normal que se faça algumas correções” [sic], que a língua tem de ser “simplificada”, “de maior facilidade de acesso”, concluindo: “Acho que sim, temos todos que ratificar, temos que [sic] corrigir.”
E afirmou, segundo a Lusa, esta coisa extraordinária: «Os novos manuais escolares de São Tomé e Príncipe que estão em fase de revisão já terão em conta o acordo ortográfico.» Ora, se bem se lembram, São Tomé foi um dos primeiros países (com o Brasil e Cabo Verde), segundo a versão oficial, a depositar o instrumento de ratificação do AO90 no MNE português em 2006, dando assim, numa decisão mais do que controversa, “luz verde” à oficialização do AO90 em todo o espaço da CPLP. E só agora vão começar a aplicá-lo aos manuais escolares? Dezoito anos depois? Isto mostra bem o carácter de farsa generalizada de que se revestiu este processo absolutamente inútil e dispensável. Mais do que revê-lo, era melhor revogá-lo. E de vez.
Cf. Deputado [angolano] quer revisão do Acordo Ortográfico + CPLP propõe sete medidas para «maior uso e reconhecimento da língua portuguesa» + Seixas da Costa diz que CPLP não funciona e que Brasil não se empenha na organização
Artigo do jornallista português Nuno Pacheco, transcrito, com devida vénia, do jornal Público de 15 de maio de 2024. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.