« (...) O triste espetáculo da passada sexta-feira e a conivência cobarde dos anticensores de serviço minam a sociedade e os seus alicerces mais fundamentais, a escola e a educação que aí se adquire. (...)»
Ainda não me refiz do desgosto de assistir aos tristes incidentes na Assembleia da República, na passada sexta-feira, e de observar a cândida e enternecedora reação de Aguiar Branco, dizendo e reiterando «Sim, pode». Se já sabia que para a direita trauliteira, a que não sabe comer à mesa, tudo é possível, confesso que ainda me surpreendeu ver a direita supostamente educadinha (fingir) confundir liberdade de expressão com boçalidade e falta dos mais básicos princípios de educação e convivência, qual Pilatos hipocritamente lavando suas mãos perante a ignomínia e o enxovalho. O pensamento egoísta que me ocorre é agradecer a Deus por já não ser professora do Ensino Básico e Secundário e não ter de explicar aos alunos o que é educação e quais as regras básicas necessárias para garantir a convivência salutar entre os diferentes membros da sociedade. Sim, porque somos e continuaremos a ser, mesmo cada vez mais, diferentes, por muito que o cabecilha do bando berre a plenos pulmões o seu ódio e a sua intolerância.
O triste espetáculo da passada sexta-feira e a conivência cobarde dos anticensores de serviço minam a sociedade e os seus alicerces mais fundamentais, a escola e a educação que aí se adquire. Vejamos. Uma das funções, a meu ver, mais difíceis de ser professor é estar perante uma turma de 20 ou 30 alunos diferentes (em proveniência, etnia, crenças, estrato económico e social, desejos, objetivos, etc.) e conseguir, pela palavra, que, durante as aulas, eles assumam comportamentos construtivos que permitam a partilha colaborativa de conhecimentos e a aquisição de competências diversas. Esses conhecimentos e competências serão os instrumentos que lhes permitirão, quando adultos, desenvolver capacidades e potencial, viver como indivíduos livres, respeitando-se a si mesmos e aos demais, aceder à mobilidade social, participar e ajudar a construir sociedades democráticas. O que os tais senhores lá da Assembleia e da política demonstraram é que, para que a escola possa funcionar e desempenhar as suas funções, haverá uns censores – entenda-se, os professores e demais educadores – que se arrogam o direito de violar a liberdade de expressão dos estudantes, reprimindo-os – entenda-se fazendo-os ser educados e respeitadores. Em suma, vale o regabofe total na escola e, já agora, na rua e em qualquer espaço público. Eu não quereria estar hoje e nos próximos tempos na pele dos professores e outros profissionais que, fiéis aos seus princípios e valores éticos (e não se tendo deixado enganar por um qualquer flautista de Hamelin), terão de contrariar, nas aulas e nos recreios, o regabofe praticado e consentido pelos poderosos lá da Assembleia.
Graças ao cobarde lavar de mãos de Aguiar (Pilatos) Branco e seus comparsas, a partir de agora tudo será permitido na casa da democracia – os insultos, a baixeza e a grosseria, o palito nos dentes, o arroto, a ventosidade ruidosa e (porque não?) os murros, os pontapés e as cenas de pancadaria. Para eles, tudo é liberdade de expressão! Tudo será possível! Desde que não sejam eles os alvos, pois claro.
Claro que, quando a vida em sociedade se tornar insuportável, teremos de encontrar um qualquer ditador, de preferência um enviado de Deus que, com a arrogância da fé e a força dada por Ele, venha pôr termo à bandalheira total – entenda-se, à liberdade e à democracia. E, não sejamos ingénuos, o messiânico flautista de Hamelin aí está, com seguidores fervorosos e tempo de antena mais que garantido na comunicação social.
Artigo de opinião da linguista e a professora universitária portuguesa Margarita Correia, transcrito, com a devida vénia, do Diário de Notícias de 20 de maio de 2024.