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Primeira nativa da Língua Gestual Portuguesa no Serviço Nacional de Saúde
Primeira nativa da Língua Gestual Portuguesa no Serviço Nacional de Saúde
Médica e surda

«(...) É a primeira médica falante nativa de língua gestual portuguesa e, na comunicação com doentes surdos (especialmente nos casos mais complexos de doentes oncológicos ou internamentos psiquiátricos), já teve um papel essencial. (...)»


Mariana Couto Bártolo nunca ouviu um som na vida. A surdez passou despercebida quase até aos dois anos, mas o diagnóstico foi contundente: «Surdez neurossensorial profunda.» Aos 29 anos, é médica interna no ano comum de formação – a única médica com surdez profunda desde que nasceu no país. É também a primeira falante nativa de língua gestual portuguesa no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Diz que ser surda lhe dá «uma sensibilidade e uma maneira diferente de observar os doentes».F

A médica, nascida em Setúbal e criada em Lisboa, conseguiu “mascarar” a surdez até aos dois anos – «vivia numa casa antiga com soalho de madeira e, quando sentia as vibrações do chão, virava-me» —, mas foi denunciada pelo ladrar de um cão: «Na creche havia um cão que ladrava sempre que os pais iam buscar as crianças», recorda. Todas as crianças reagiam quando ouviam o cão, excepto Mariana, que continuava absorta nas suas brincadeiras.

Ironicamente (ou não), o seu primeiro sonho foi ser médica veterinária. Só no 9.º ano é que mudou de ideias, depois de uma professora de Matemática lhe ter «plantado a semente» da Medicina. «Esta professora perguntou-me por que é que eu não considerava ser médica e ajudar outras pessoas surdas», lembra. E assim foi.

O percurso até lá chegar foi «desafiante». Em conversa com o P3 [suplemento do Público], lembra que as barreiras tiveram de ser ultrapassadas com “criatividade”, mesmo no curso de Medicina da Universidade Nova de Lisboa. As aulas tinham de ser «gravadas e transcritas» em conjunto com os colegas, que também reviam «o conteúdo cientificamente».

O exame oral da «temível cadeira de Anatomia» foi outro dos momentos que lhe ficaram na memória: o professor não acedeu ao pedido de uma avaliação por escrito. “Não por discriminação”, ressalva, mas porque achou que reunia condições para a prova oral. «No dia do exame estava muito assustada, sobretudo porque não me ia expressar de uma forma que é natural para mim – tenho voz de surda», confessa.

“Deaf gain” [«A vantagem da surdez»]

Foi com esforço (e uma boa dose de criatividade) que chegou ao consultório. Hoje, admite, a comunicação com os doentes pode tornar-se desafiante, mas isso não a assusta: «Ao longo de toda a minha vida sempre me adaptei aos outros, tentando várias formas de comunicar até me entenderem.»

«Começo pela via oral, esclarecendo que sou surda e que faço leitura labial. Se me compreenderem e eu a eles, o que acontece na maioria dos casos, o atendimento prossegue assim», exemplifica. Quando a comunicação não é clara, escrever num papel ou no computador as perguntas que precisa de ver esclarecidas é a estratégia que usa.

No contacto com os doentes, acredita que a surdez a dotou de uma “sensibilidade” e forma de observar as pessoas e a sua expressão facial que se revela muito útil. Explica que na comunidade surda existe o conceito de «deaf gain», que alude à surdez não como uma deficiência, mas como algo positivo e vital para a diversidade humana, o «reconhecimento e valorização das experiências e habilidades únicas das pessoas surdas», esclarece Mariana.

Ainda há quem acredite que Mariana não pode «exercer qualquer especialidade, especialmente as que envolvem muita comunicação», mas a médica rejeita essa opinião: são «barreiras impostas pela sociedade e pelo que é considerado a norma» e que podem ser facilmente ultrapassadas, especialmente com o recurso à tecnologia.

«Tenho as mesmas responsabilidades do que qualquer outro colega no mesmo patamar e cumpro as minhas funções com rigor.»

A língua gestual como primeira língua

A principal diferença surge quando, à sua frente, encontra alguém que também é surdo. É a primeira médica falante nativa de língua gestual portuguesa e, na comunicação com doentes surdos (especialmente nos casos mais complexos de doentes oncológicos ou internamentos psiquiátricos), já teve um papel essencial.

«A informação, transmitida com clareza, pode ser um factor determinante para a forma como os doentes surdos controlam e encaram o seu estado de saúde», acredita. «Ainda há um longo trabalho por fazer» no SNS para que as pessoas surdas «possam ter acesso universal à saúde», admite.

Essa diferença sente-se não apenas no acesso à saúde, mas também no acesso à educação. Depois de ter passado os primeiros anos de formação no Instituto Jacob Rodrigues Pereira (com ensino especializado para crianças surdas), a médica escolheu o ensino regular e chegou a ter “algumas horas de aulas por semana com recurso a intérpretes de língua gestual portuguesa”. Contudo, Mariana descobriu que “não gostava desse tipo de comunicação”, por ver o intérprete como um “intermediário”.

Preferindo sempre uma comunicação directa com as pessoas, optou, a partir do 9.º ano, por não ter intérprete nas aulas e esclarecer as suas dúvidas directamente com os professores.

Para ela, um ensino verdadeiramente eficaz para crianças surdas, que se equipare ao de crianças ouvintes, “tem de incluir o bilinguismo o mais precocemente possível”. É através da exposição constante, “tanto na escola como em casa”, com o português escrito e com a língua gestual portuguesa enquanto língua materna que as crianças surdas conseguem “ter um bom contacto com o mundo que as rodeia” e atingir o mesmo nível de aproveitamento escolar “que as demais crianças”, refere Mariana Bártolo.

E a saúde mental?

Para além do percurso na medicina, Mariana é também uma defensora activa dos direitos da comunidade surda – especialmente no que toca a saúde mental. É vice-presidente da Federação Portuguesa das Associações de Surdos e esteve envolvida na criação do primeiro curso de saúde mental para surdos.

«As pessoas surdas têm maior propensão para doenças mentais», contextualiza. Isso explica-se por vários motivos: a maior tendência para o isolamento devido às barreiras na educação ou no trabalho, a privação da língua ou «o facto de crescerem num ambiente em que a família não comunica com elas – no caso de famílias que não dominem a língua gestual».

«As doenças mentais que afectam as pessoas surdas são muito pouco estudadas», afirma. «Os profissionais da área não estão informados nem preparados para interagir fluentemente com um doente surdo» e uma falha na comunicação resulta, muitas vezes, «em diagnósticos equívocos». Ela quer mudar isso.

Fonte

Trabalho incluído no jornal Público em 15 de novembro de 2023, transcrito, com a devida vénia, da edição original conforme a norma ortográfica de 1945.

Sobre o autor

Jornalista estagiária no Público, desde setembro de 2023.