A representação normativa do discurso direto faz-se usando os dois pontos, que anunciam a transcrição de um texto que terá sido dito tal como se vai transcrever. Este texto é antecedido de um travessão, que, colocado à cabeça do enunciado, sinaliza o início do discurso direto.
Ora, Saramago, em muitos dos seus textos, opta deliberadamente por não seguir a pontuação usada na tradição. Ao buscar uma escrita próxima da oralidade, o autor abdica de certos convencionalismos que, na sua ótica, introduzem artificialidade na escrita. Segundo o autor, para falar não precisamos de usar os dois pontos ou o travessão. Logo, para trazer a naturalidade da fala para a escrita, há que abdicar dos sinais que a limitam.
Saramago assume-se como um narrador oral, um contador de histórias, que precisa de captar o ritmo, a altura, os silêncios da fala. Fá-lo com os sinais de pausa breve, a vírgula, e de pausa longa, o ponto.
Esta forma de narrar encontrou-a durante a escrita de Levantado do Chão. Conta-nos Saramago que, a certa altura, teve uma espécie de epifania: «quando ia na página 24 ou 25, e talvez esta seja uma das coisas mais bonitas que me aconteceram desde que estou a escrever, sem o ter pensado, quase sem me dar conta, começo a escrever assim: interligando, interunindo o discurso direto e o discurso indireto, saltando por cima de todas as regras sintáticas ou sobre muitas delas»1.
E acrescenta Saramago, «Quando aconteceu algumas pessoas dizerem que não entendiam nada, a minha única resposta, nessa altura, já há muitos anos – em 1980, quando o Levantado do Chão saiu –, foi: leiam uma página ou duas em voz alta. […] O leitor há-de ouvir, dentro da sua cabeça a voz que "fala".»2.
Áudio disponível aqui
[AUDIO: Carla Marques_ DiscursoDireto_Saramago]
1. Saramago, J. (s.d.), apud LOPES, J. M. (2009). Saramago – biografia. Leya, pp. 94-95.
2. Reis, Carlos (1998). Diálogos com Saramago. Caminho, pp. 101-102.
Primeira imagem: Saramago por Vhils (2016, Madrid)