« (...) [F]ui procurar palavras que o português recebeu da língua persa. Aqui ficam dez exemplos, de açúcar a mago (...).»
Os Três Reis Magos são figuras que a tradição foi construindo a partir de uma descrição, na origem, muito sucinta — os relatos bíblicos não nos dizem que eram três e nem sequer dizem, na verdade, que eram reis. As histórias são assim, começam num sopro e acabam em intrincados relatos transmitidos de geração em geração. Pelos séculos fora, houve quem dissesse que os Reis Magos vinham da Pérsia — noutras versões, só era persa o rei a que chamamos Melchior. De uma maneira ou de outra, neste Dia de Reis, lembrei-me de olhar para a língua persa e procurar alguns dos presentes que deu à nossa língua.
1. Açúcar – Não é mirra, nem ouro e muito menos incenso, mas faz parte do Natal, de tal maneira que as balanças de Janeiro têm de aguentar uns quilos a mais. A palavra entrou nas línguas europeias a partir do árabe as-sukkar, por duas vias: a via italiana, que levou a palavra até ao francês e ao inglês (entre outras), e a via ibérica, que nos deu a nossa palavrinha açúcar. Ora, os árabes também já tinham ido buscar esta doce palavra ao persa, onde era šakar. Como estas histórias parecem não ter fim, diga-se que a palavra persa tem uma origem mais remota: o sânscrito śárkarā.
2. Laranja – Há mais alimentos com nomes de origem persa, que fizeram o mesmo caminho até ao português: laranja, por exemplo, veio da nārang persa, passando pelo árabe (e, tal como no caso do açúcar, também já tinha vindo do sânscrito). Também o limão veio do árabe laymūn, que tinha vindo do persa limu.
3. Pato – O pato fez o mesmo caminho: do bat persa, passou ao baṭṭ árabe, que na nossa península se transformou no pato. Todas estas palavras que passam pelo árabe fazem um caminho peculiar: o persa é uma língua indo-europeia; empresta palavras a uma língua de outra família, o árabe, que depois as devolve a idiomas da mesma família da origem. Ou seja, o árabe é como o amigo que anda a transportar prendas entre irmãos que vivem longe uns dos outros. Neste caso, as prendas são palavras.
4. Xadrez – Uma das prendas do meu filho, este Natal, foi um tabuleiro de xadrez. A palavra começou no sânscrito, de onde passou ao persa, onde se dizia šatrang, que a emprestou ao árabe, na forma aš-šaṭranj, que a ofereceu às línguas ibéricas, acabando no nosso xadrez. Estas transformações profundas das palavras, ao saltar de língua, mostram como a viagem se faz de muitas conversas, onde as palavras são ouvidas e, depois, repetidas com os sons da nova língua — e ainda mastigadas pelas gerações. É um jogo do telefone pela história fora. As palavras que aqui vemos acompanham o que representam. Imaginemos um jogo de xadrez na antiga Andaluzia, entre um viajante do Oriente, que conhece as regras, e um moçárabe, que tenta repetir a palavra o melhor que pode aos amigos, já com os sons da sua língua latina. O jogo fica — e a palavra também.
5. Cheque – Já que falamos de xadrez, diga-se que xeque e xeque-mate também são de origem persa – e, por acaso, cheque (de dinheiro) também. Tal como xeque, a palavra financeira tem origem no nome da peça do rei no xadrez, num caminho que inclui o latim, o francês e o inglês, o que explica por que razão, neste caso, a palavra começa com outra letra. Aliás, no princípio de cheque vemos o eco da palavra persa para rei, šâh, que todos conhecemos quando nos lembramos do Xá da Pérsia. Como é que de «rei» chegámos a «cheque» (documento)? Há caminhos sinuosos nestas viagens. O inglês foi buscar check à palavra do francês antigo para xeque do xadrez (eschec, palavra que viera do latim, que a fora buscar ao persa). O inglês deu-lhe um significado mais genérico, relacionado com «verificação», por ser o momento em que, no xadrez, é preciso verificar a posição do rei. Além do nome check («verificação») e do verbo to check («verificar»), a palavra acabou por dar nome ao documento que permite verificar a legalidade e a quantia de uma transacção – com este significado mais preciso, a palavra tem duas formas em inglês: check e cheque. O novo vocábulo acabou por se espalhar por outras línguas, incluindo o francês (de onde viera) e o nosso português.
6. Pijama – Uma outra prenda que algumas crianças terão encontrado na noite de Natal terá sido um pijama. Esta palavra percorreu um caminho um pouco diferente: começou no persa pāy-jāma, que significava «roupa para as pernas», e passou para o hindi e urdu com a mesma forma. Na Índia, os europeus (portugueses e ingleses entre eles) encontraram este tipo de roupa nocturna e começaram a usá-la, aproveitando o nome. Com o tempo, os ingleses trouxeram a palavra até à Europa. O inglês pyjama acabou por se espalhar pelas outras línguas – até chegar ao português.
7. Azul – Esta palavra tem origem no nome da pedra lápis-lazúli, que já se minerava nas montanhas do Afeganistão há quase 10 000 anos. O nome persa da pedra passou ao árabe, que o trouxe na forma lāzuward até à Península Ibérica. Esta palavra acabou por dar origem ao azul com que, em várias línguas ibéricas, nos referimos à cor daquela rocha.
8. -stão – Até partes de palavras têm origem persa, como o -stão que termina o nome de vários países: Afeganistão, Tajiquistão, Cazaquistão, entre outros. O sufixo também é útil para criar países imaginários… Todas as línguas recebem e oferecem palavras a outros idiomas. No entanto, há línguas que são especialmente generosas, como o grego, o latim e o árabe. O persa é outra dessas línguas: ofereceu, ao longo dos séculos, palavras a várias línguas das redondezas, pela força do seu prestígio e do seu uso na literatura e na ciência.
9. Magia – A palavra magia veio do latim magia, aonde tinha chegado vinda do grego μαγεία – que significa «a arte do mago». Ora, a palavra grega para mago veio de onde? Do antigo persa…
10. Mago – Chegados à palavra mago, aproveito para desejar um feliz Dia de Reis, em especial a quem me lê no reino vizinho, onde este é dia de presentes. Foi esta a minha prenda: dez pequenas viagens pela história das nossas palavras.
Artigo publicado a 6 de janeiro de 2022 no blogue Certas Palavras.