«(...) sopas ainda hoje são «o pão que se miga na sopa» – ou no vinho açucarado, se forem de cavalo cansado (...)»
Mica, miga, migalha, migar, tudo isso vem tudo do latim mica, que quer dizer «migalha». É uma família de palavras ibérica, se se pode dizer assim, pois que existem palavras semelhantes em línguas vizinhas — pelo menos em galego (miga, migalla, migar) e castelhano (miga, migaja, migar).*
Uma parte do significado desta família de palavras está relacionado com pão; e migar, além de significar «esfarelar» ou «partir ou cortar em pedaços pequenos», significa «pôr pão na sopa». A sintaxe deste migar é variável. Vê-se por exemplo, em Quando os lobos uivam, de Aquilino Ribeiro [1885-1963], um migar transitivo que tem como objeto a tigela (e, deito-me eu a adivinhar, que nunca tal ouvi, talvez também a sopa…):
"Miga bem a tijela!", dizia a voz materna, amorável no seu sotaque ralhado. "Miga bem, Jaime, que só tens caldo!"
Há também outra construção em que migar pão tem a sopa como objeto indireto. Conheço-a de um dos Contos tradicionais do povo português, de Téofilo Braga [1843-1924], um história que ele diz ter recolhido em Airão, no Minho:
Um rapaz foi offerecer-se para criado a casa de um lavrador; á noite, quando foram ceiar, deram-lhe uma tigella de caldo. Diz elle:
– Oh meu amo, o caldo está muito quente.
– Pois sópra-lhe.
No dia seguinte o rapaz despediu-se, entendendo lá para si que lhe não convinha servir n'aquella casa, onde nem tempo dariam para comer. Foi-se offerecer a casa de outro lavrador; aconteceu a mesma cousa; ao começar a comer o caldo, disse:
– Oh meu amo, o caldo está muito quente.
– Pois espera que arrefeça.
O moço tambem resolveu não ficar servindo n'aquella casa, cuidando que lhe dariam tempo sem mais nada. Foi-se embora ao outro dia, e chegou a casa de outro lavrador, que o tomou para o serviço. Á ceia disse o moço:
– Oh meu amo, o caldo está muito quente.
– Pois miga-lhe brôa.
O rapaz disse lá para si, que aquella era a casa que lhe convinha, e ali se deixou ficar.
Eu sei que não é grande novidade para ninguém o que fica para trás. Sabemos todos que, antigamente, a sopa de muitos era caldo que de entulho só tinha pão; e também sabemos quais eram as condições laborais dos trabalhadores rurais em tempos que felizmente já lá vão… Agora, talvez seja novidade para alguns o que se segue:
A palavra sopa, antes de significar o alimento (semi)líquido, significava o pão que nela se punha. A palavra é de origem germânica, mas parece ter chegado às línguas latinas (e ao inglês) pelo latim, que a tinha incorporado. É certo que sopas ainda hoje são «o pão que se miga na sopa» – ou no vinho açucarado, se forem de cavalo cansado –, mas o que eu quero dizer é que é foram os bocados de pão migados no líquido a dar nome à sopa e não a sopa a dar nome aos bocados de pão, se me faço entender.
* Noutra línguas latinas, há um nome apenas: em catalão, há mica, «bocadinho»; em francês há mie, «miolo (de pão)»; e em italiano, mica, que pode ser «bocado» ou «migalha de pão».
Texto do tradutor Vítor Santos Lindgaard, que o publicou no seu blogue Travessa do Fala-Só em 2 de setembro de 2019.