A autora evidencia como a construção do projeto Ciberescola da Língua Portuguesa, no contexto do ensino do Português Língua Não Materna (PLNM) no ensino básico e secundário em escolas públicas portuguesas, permite defender que o modelo da aprendizagem autónoma transcende o âmbito do PLNM e é exportável para outras disciplinas.
1. Introdução
A aprendizagem autónoma nãoé um conceito novo. Ele radica em teorias que remontam ao primeiro quartel do séc. XX e que enfatizavam fortemente a necessidade de os aprendentes assumirem eles próprios a responsabilidade pelo seu processo educacional, ainda que guiados pelo professor1. Especificamente, a aprendizagem independente de uma língua segunda (L2) tem sido perspetivada segundo diferentes enquadramentos teóricos, mas cujo fio condutor está no reconhecimento da necessidade de desenvolver no aluno a capacidade de se tornar proficiente em contextos que não sejam os exclusivamente mediados pelo professor. Por sua vez, a emergência da aula invertida (“flipped classroom”), mediante a qual os alunos assistem em casa a breves trechos de aulas expositivas vídeo-gravadas, sendo a sessão presencial, em turma e com professor(es), destinada à realização de exercícios ou construção colaborativa de projetos, começa a ser vista como etapa preparatória para a aprendizagem independente ao longo da vida.
Neste artigo, mostrar-se-á como necessidades e obstáculos sentidos no contexto do ensino do Português Língua Não Materna (PLNM) no ensino básico e secundário em escolas públicas portuguesas moldaram a construção do projeto Ciberescola da Língua Portuguesa que assenta grandemente na estimulação da aprendizagem autónoma. Defender-se-á que este modelo, implementado especificamente para o PLNM, é exportável para outras disciplinas.
2. Aprender autonomamente
O objetivo último do ensino formal, em contexto escolar, é a independência da aprendizagem, o que quer dizer que, cumulativamente às matérias ensinadas, ocorre (idealmente) a indução de métodos de assunção da (i) responsabilidade individual pela aprendizagem, (ii) consciência crítica face à informação recebida, (iii) autorregulação da capacidade de trabalho e (iv) gestão do tempo de estudo. Progressivamente, é expectável que seja implementado um quadro pedagógico de atuação em que o aluno não espera que o professor lhe faça perguntas, mas que seja ele a fazê-las ao professor, tomando ele próprio a responsabilidade de preencher as lacunas no processo de aquisição de um desempenho ou conhecimento teórico.
O conceito de estudo autónomo não deve confundir-se, portanto, com a realização de tarefas contíguas às da sala de aula e que estão na continuidade desta (como os trabalhos de casa ou trabalhos de grupo na biblioteca da escola), antes se aplica a todo o tipo de enquadramento em que o indivíduo autodirige o seu percurso de aprendizagem,oqueimplicapoderesaber tomar decisões sobre a distribuição de enfoques e períodos de tempo dedicados a um tópico ou outro. Os benefícios apontados são o aumento da motivação e da autoconsciência quanto às necessidades de aprendizagem e comportamentos relativamente ao esforço empreendido na consecução dos objetivos estipulados para uma dada disciplina em causa. É certo que os modelos ativos de aprendizagem visam, em geral, alunos do ensino superior, mas são igualmente abundantes estudos concernentes ao ensino pré-universitário (Cleary & Zimmerman, 2001; Reeve at al. 2004; Lamb, 2004).
Uma definição consensual de aprendizagem autónoma concerne à capacidade de pôr em máxima atuação o potencial de aprender que cada um detém, ultrapassando os obstáculos por si próprio, aliada à resiliência. (Moore, 1973).
De notar que o papel do professor não é descartado, pelo contrário, ele recebe mais proeminência se encarado como o de facilitador das aprendizagens. O professor tem de saber gerir o processo de autoaprendizagem de modo a que ele se torne maximamente eficaz, fazendo com que o aluno não perca de vista o panorama integrador de todas as matérias e objetivos da disciplina, recomendando recursos (textos, áudios, vídeos) em abundância que os alunos têm de filtrar e reorganizar na consecução de um argumento ou na melhoria de um desempenho, bem como, naturalmente, implementando todo o processo de avaliação.
3. Aula invertida
Em 2008, no Estado do Colorado, EUA, dois professores de Química ocuparam-se de repetir, gravar em vídeo e publicar online aulas já lecionadas em sala de aula, nas suas turmas. Esta saulas registadas em vídeo destinavam-se a alunos que não podiam estar nas aulas presenciais, por diferentes motivos (saúde, profissão dos pais, etc.). Os alunos absentistas tiraram pleno partido das aulas em vídeo, o mesmo acontecendo, curiosamente, com os alunos assíduos. Também estes usavam as aulas online para rever e consolidar o que já tinha sido avançado nas aulas presenciais. Não é difícil perceber como esta iniciativa dos dois professores de Química desencadeou a oportunidade de repensar as atividades na sala de aula.
Outro caso elucidativo é o da Khan Academy, um website de acesso livre e universal, em que os alunos – ou qualquer pessoa interessada - pode assistir a cerca de 2400 vídeos, com duração de aproximadamente 14 minutos, complementados com 100 000 exercícios sobre diferentes disciplinas (Matemática, Física, Biologia, Informática, História, entre outras2). Inicialmente, a Khan Academy era vista como um suplemento à lecionação tradicional, mas rapidamente se transformou em muito mais do que isso. Professores de várias escolas dos EUA começaram a trocar as suas aulas de explicitação teórica pelos vídeos da Khan Academy que os alunos viam em casa. No dia seguinte, na aula presencial, o tempo era aproveitado integralmente para a resolução de problemas, trabalho analítico ou elaboração de projetos.
Surge, assim, o conceito de aula invertida, na medida em que a transmissão de conhecimento, que prototipicamente corresponde à noção de aula, ocorre onde antes tinham lugar os trabalhos práticos, ou seja, em casa; por sua vez, as tarefas que tipicamente eram relegadas para trabalho de casa são trazidas para a sala de aula, onde o aluno necessita da presença física do professor e dos colegas no processo dinâmico e complexo de resolução de problemas.
Apesar de alguns estudos alertarem para a falta de provas conclusivas sobre a eficácia da aula invertida na aquisição de competências exigidas para as novas profissões do séc. XXI (O'Flaherty & Phillips, 2015), os resultados imediatos deste modelo de ensino têm sido inequívocos, com um aumento acentuado de envolvimento ativo (e não apenas reativo) dos alunos no processo de aprendizagem. E é neste ponto que a aula invertida se cruza com o estudo autónomo, na medida em que o aluno é, desde cedo (e não apenas ao nível universitário), chamado à responsabilidade de garantir a qualidade do seu estudo fora da escola, revendo vídeos, assistindo a vídeos complementares aos estritamente apontados pelo professor, realizando os exercícios interativos na quantidade que ele próprio determinar. Aliás, é precisamente por isso que websites como os da Khan Academy se destinam, simultaneamente, a alunos que frequentam o ensino formal ou a qualquer outro indivíduo, independentemente da faixa etária e habilitações.
4. Ciberescola da Língua Portuguesa
A Ciberescola da Língua Portuguesa (www.ciberescola.com) é um website lançado em 2009, orientado para o Ensino do Português Língua Segunda (PL2) /Língua Não Materna (PLNM) 3 . Até 2011, funcionou apenas como acervo de materiais interativos para estudo suplementar do PL2 a alunos já integrados num programa de ensino formal do português. A partir de 2011 até ao presente, é, cumulativamente, o website onde têm lugar aulas por videoconferência lecionadas a alunos de seis AE do país (Porto, Mira-Sintra, Arrentela, Marrazes, Olhão e Faro), abrangendo 163 alunos (do 2.º ao 12.º anos), sendo assim possível, por ser um serviço online, formar turma/grupo com alunos de diferentes AE4. O projeto foi objeto de protocolo entre a Associação Ciberdúvidas da Língua Portuguesa (detentora das plataformas ciberescola.com e cibercursoslp.com) e a Direção Geral de Educação/Ministério da Educação.
O website apresenta ao aluno listas de aulas, ou seja, agregados de vídeos, imagens e exercícios interativos, organizados em cursos cujo critério é prioritariamente o nível de proficiência (A1, A2 e B1), podendo este ser combinado com o critério da língua materna do aluno ou com uma competência específica que se queira estimular. Nesta medida, existem cursos específicos de A1 para alunos falantes de mandarim ou cursos específicos de A2 de compreensão do oral, por exemplo. Constam da base de dados, presentemente, 1077 aulas e 617 exercícios não integrados em aulas. Em articulação com os materiais/aulas interativas, há a considerar também os materiais enviados às escolas em PDF (como trabalho de casa) disponíveis em www.cibercursos.com, perfazendo, até ao momento, 401 ficheiros.
A lecionação é feita com recurso ao serviço gratuito FlashMeeting da Open University UK5. Nas escolas, os alunos participam nestas aulas dispondo individualmente de um computador com ligação à Internet, microfone e câmara. A equipa de professores da Ciberescola constitui-se de três professores pós-graduados ou a desenvolver investigação em ensino de PLNM/PLE6. Integram também a equipa, pontualmente, intérpretes/tradutores, que participam nas aulas sempre que para isso convocados (as línguas presentemente visadas são o turco, o romeno, o ucraniano, o russo e o chinês/mandarim).
O projeto foi objeto de avaliação externa, na vertente tecnológica e científica, nos anos de 2012/2013 e 2013/2014, pelo Instituto de Linguística Teórica e Computacional (ILTEC), que concluiu a respeito da centralidade do projeto «para a promoção do ensino de PLNM ao longo de todo o país, de forma sistemática e eficaz, permitindo a inclusão de muitos alunos de escolas em que não há um número mínimo de alunos de língua materna estrangeira para formar uma turma presencial.»7.
No ano de 2014-2015, a Ciberescola cedeu às escolas aderentes 12 tablets híbridos, em regime de empréstimo, cuja aquisição foi apoiada pela Fundação EDP.
O facto de os alunos terem acesso a centenas de aulas – do seu curso e de outros –, combinado com a necessidade de agregarem videoconferência alunos de diferentes línguas maternas e faixas etárias, a que se junta a impossibilidade de a carga letiva destas sessões de videoconferência não poder ir além de dois tempos por semana, dado que os alunos, ainda que com baixa proficiência, não podem ser dispensados da frequência de nenhuma das disciplinas do currículo, fazem com que o projeto da Ciberescola venha a ser progressivamente desenhado para o estudo autónomo, ainda que programado em conjunto na sessão de videoconferência. Assim, em casa ou nos espaços escolares com wireless, os alunos realizam as aulas da Ciberescola em número e na ordem que entenderem (vêm os vídeos, ouvem os áudios e realizam os exercícios interativos) e, na sessão de videoconferência, o professor verifica, individualmente, a qualidade dos resultados (automáticos, classificados pelo computador), esclarece tópicos, desmonta dificuldades, escreve no chat exercícios de consolidação e (re)desenha os programas de estudo das semanas seguintes. Para os alunos que não dispõem de computador em casa com ligação à internet, é fornecida a versão em papel das aulas8.
Pode parecer desadequado que um projeto de ensino por videoconferência a falantes de baixa ou nenhuma proficiência conte fundamentalmente com a capacidade de o aluno adquirir em autonomia um leque alargado de competências num curto espaço de tempo. Afinal, tipicamente, uma aula de iniciação, sobretudo se o aluno não tiver experiência prévia de aquisição de uma qualquer outra L2, está maximamente dependente da instrução direta do professor, programada em função de um percurso graduado, prevendo que o aluno passe ao estádio seguinte, quando adquiridas as competências do estádio anterior (antes do pretérito perfeito, o presente; antes da aquisição de nomes abstratos, os nomes concretos, etc.). No entanto, há que atender a que os alunos estão em contexto de imersão e, portanto, constantemente expostos a input “natural” (conversas formais e informais, aulas das restantes disciplinas, media portugueses), e que continuam a usufruir de aulas de apoio tradicionais na sua escola. Mas acima de tudo, a urgência com que um aluno estrangeiro, recém-integrado ao sistema de ensino português, tem de adquirir as competências de compreensão e expressão oral, leitura e escrita e, mais difícil, competências relativas à chamada língua de escolarização (vocabulário e estruturas sintáticas e textuais específicas das disciplinas de Matemática, História, Biologia,etc.) fazem do estudo autónomo uma absoluta necessidade e não apenas um ideal desejável.
O modelo de ensino descrito é transferível para outras disciplinas, integrando ou não aulas por videoconferência. No caso da Ciberescola, as aulas por videoconferência são o recurso encontrado para dar assistência à aprendizagem de um número residual de alunos estrangeiros espalhados por diferentes escolas do país. Porém, a pedra angular do projeto está no seu acervo de materiais interativos, de acesso livre e gratuito. O alargamento do website a todas as disciplinas do currículo permitirá ao professor, em sala de aula, agilizar a componente de lecionação teórica e centrar-se nos desempenhos dos alunos aquando da realização de tarefas e novos problemas.
5. Conclusão
Como se procurou mostrar, um plano de ensino assente no estudo autónomo nem sempre é uma modalidade opcional. No caso da Ciberescola, ela é imperativa, dada a especificidade do contexto de ensino do PLNM nas escolas públicas portuguesas. Os modelos assentes na estimulação da independência do percurso de aprendizagem – com recurso a materiais online ou em papel – dão garantias, de curto e médio prazo, pelo menos, de acréscimo de envolvimento dos alunos no processo de aquisição de conhecimentos e desempenhos. Ainda que a Ciberescola não tenha sido submetida, até ao momento, a um estudo quantitativo/comparativo para apurar o seu grau de sucesso relativamente aos alunos PLNM do regime normal (previsto no normativo n.º12/2011), o modelo exemplificado pela Ciberescola encontra-se no filão do que tem sido recentemente valorizado em diferentes escolas dos EUA e, mais recentemente, da Europa.
1 Para uma revisão da literatura ver Morrison (2011).
2 Cf. https://www.khanacademy.org/library (consultado a 2/07/2016)
3 O termo Português Língua Segunda é vulgarmente usado para referir o ensino indiferenciado do Português a qualquer falante não nativo; Português Língua Não Materna é o termo específico instituído pelo Ministério de Educação, através das orientações programáticas de 2008 (http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Basico/Documentos/orientprogramatplnmversaofinalabril08.pdf) para o ensino de português a crianças e jovens falantes não nativos do português a frequentar escolas portuguesas.
4 No decurso das alterações introduzidas pelo Despacho Normativo n.º12/2011, decorrentes da supressão da área curricular não disciplinar de Estudo Acompanhado, escolas com um número residual de alunos falantes não nativos do português (abaixo de10) encontram frequentemente dificuldades em fornecer o apoio necessário e especializado à integração do aluno no meio escolar e ao acesso ao currículo.
6 Cf. http://www.ciberescola.com/index.php?action=equipa
7 Cf. Avaliação externa de 2013, http://www.prof2000.pt/users/anamartins/Avalia%C3%A7%C3%A3o%20Externa%20Ciberescolas%20junho%20de%202013.pdf
Artigo da revista Nova Ágora, n.º 5, setembro de 2016.