« (...) [Eu,] mera professora de Português numa escola pública, sofro diariamente com a vaga de palavrões que me assola desde o momento em que entro na escola até que saio. (...)»
Nunca descurei o poder terapêutico de um bom palavrão. Dito no momento certo, faz mais pela minha saúde mental do que uma boa oração. De vez em quando também digo um belo "f...-se"... Sai-me! Pronto, vai por ali fora como as decisões, não deixando espaço para arrependimentos. Mas eu sou professora. Ensino Português, a língua de Camões, Pessoa e Saramago. Não posso pactuar com o chorrilho de palavrões que escorre pelas escolas públicas em geral e pela minha em particular.
Caro leitor, quando me refiro a palavrões não penso no uso incorreto, por vezes desajeitado que se faz da nossa língua e que, tal a boçalidade dos termos utilizados, para alguns quase roça o palavrão. Não estão sequer em causa palavras e/ou expressões que se propagam por aí como cogumelos. Não me refiro a bordões como o popular tipo, sem o qual a maior parte dos jovens de hoje não consegue articular uma simples frase, seja simples ou composta, ou ainda a outras utilizações incorretas da nossa língua como é o caso de a gente somos, houveram, visto e ouvisto, hádem, derivado do, deslargar, prontos, por causa que (entre tantos outros). Não! Essas palavras e expressões são quase pequenos oásis no meio do chorrilho de palavrões em que me afundo diariamente. Refiro-me a esse hábito de dizer palavrões que atravessa, dizem, todos os estratos sociais e que é, sem dúvida, parte integrante do vocabulário mais usado pelos adolescentes, pelo menos os que frequentam a minha escola…
Vejamos: estaciono o carro são sete horas e cinquenta minutos aproximadamente e há já pequenos grupos de alunos, mais madrugadores, que, junto ao portão da escola, conversam entre si. Passo por eles e ouço, logo ali, uns quantos f....-se, aos quais tento escapar porque ainda é muito cedo e eu mal acabei de acordar e os meus ouvidos precisam de um pouco mais de tempo de habituação para o flagelo que se seguirá. Atravesso o portão e outros grupos acumulam-se no átrio onde a situação se agrava dramaticamente porque, aos magotes, os alunos parecem soltar os palavrões de forma mais livre. Atravesso os palavrões protegendo-me como posso mas sem nunca lhes ficar indiferente. Durante anos interpelei os alunos, repreendi-os, corrigi-os, apelando sempre com bons modos ao bom senso e educação necessários dentro e fora da escola.
Enfrento sempre com o olhar o aluno de onde sai a boçalidade (caso conseguisse identificá-lo) e, ao dar-se o caso deste aluno pertencer a uma das minhas turmas, recebo de imediato um desculpe, stora. Nem tudo é mau. Caso contrário, o aluno fica completamente indiferente à minha repreensão ou chega mesmo a devolver-me um olhar desdenhoso como se eu fosse um mero inseto que ganhou coragem para voar. Se inicialmente e durante muito tempo, repreendi os alunos, confesso que aos poucos [me fui] deixando disso. Agora já quase consigo fazer de conta que não ouço... Atravessa os grupos de alunos uma professora surda. Porque já comecei muitos dias de trabalho ansiosa e triste. Porque me apercebi de que, nervosa e angustiada com as respostas e atitudes que recebia, o meu dia ficava irremediavelmente mais difícil. Porque a reação indescritível de alguns alunos quando repreendidos é suficiente para que o meu sistema nervoso ameace saltar de órbita e a mim me apeteça dar-lhes um estalo. Porque a vaga de palavrões nas escolas públicas (das outras não falo porque as não conheço) veio para ficar.
Diz quem sabe que o hábito de dizer palavrões vem do tempo dos romanos e que alguns palavrões, a meu ver mais ténues e macios como merda e puta, têm origem latina. Parece também que inicialmente os palavrões mais ofensivos estavam ligados à vida religiosa, algo que hoje em dia deixou de fazer qualquer sentido pois mandar alguém para o Diabo não tem poder absolutamente nenhum nos dias que correm. São os palavrões ligados à sexualidade e ao corpo humano que são os mais populares e que fazem a delícia dos nossos jovens, servindo como elemento de team bonding, o elo que faz falta aos adolescentes para se sentirem ligados entre si. A palavra que designa a vigia, ou seja, o lugar mais alto de uma embarcação é um dos palavrões mais usuais nos corredores da minha escola, atirado ao ar por alunos do 7.º ano 12.º ano, seguindo-se de imediato o célebre e popular f....-se. Talvez pudéssemos propor no regulamento interno a aceitação de pequenas variações ao vernáculo puro e duro, sei lá... Talvez a interjeição fosga-se pudesse ser um substituto ou o suavizado fónix fosse passível de aceitação.
Alguns peritos na matéria avançam com a ideia de que o uso repetido e consistente de palavrões é uma resposta natural à dor, ajudando mesmo a suportá-la (tese defendida pelo psicólogo britânico Richard Stephens). Porém, a sua utilização constante tem um efeito contrário na medida em que o uso repetido destes palavrões perde o seu efeito terapêutico. Outros especialistas nesta matéria defendem que o uso do palavrão alivia o stress, ajudando a expressar emoções, muitas vezes as mais básicas.
Quanto a mim, mera professora de Português numa escola pública, sofro diariamente com a vaga de palavrões que me assola desde o momento em que entro na escola até que saio. É uma forma de agressão de que ninguém fala mas que me afeta de forma persistente e me deixa por vezes à beira da depressão. Estou seriamente a pensar estabelecer um contrato com os meus alunos sobre o uso do palavrão. Vou dizer-lhes que, tal como eu faço, também eles devem guardar muito bem os palavrões para quando precisarmos mesmo deles. Assim, cada aluno meu poderá dizer um bom palavrão por período, à minha frente, numa ocasião especialmente emotiva, à sua escolha. Permitir-lhes-ei que expressem de forma audível um palavrão dos bons quando, por exemplo, receberem a nota do teste de Português!
artigo publicado na edição digital da revista Visão do dia 25 de outubro de 2018.