«Esta guerra em pretensa defesa da língua portuguesa [no regime de patentes da União Europeia, que a limitou ao inglês, ao francês e ao alemão] não passa de uma bravata serôdia», escreve neste artigo o eurodeputado português (PSD) Paulo Rangel, contestando posições diametralmente opostas, nomeadamente as do ex-deputado do CDS José Ribeiro e Castro e dos 2500 subscritores da petição contra a exclusão do português.
1. A ratificação pelo Presidente da República [português] do Acordo relativo ao Tribunal Unificado de Patentes e àquilo a que, com algum simplismo, se pode chamar o regime da patente europeia criou uma grande celeuma acerca da defesa do uso do português nas instâncias internacionais. Quem conhecer bem o andamento dos trabalhos na concepção e feitura desta legislação – e, designadamente, os meandros das discussões travadas no Parlamento Europeu –, logo se aperceberá como esta guerra em pretensa defesa da língua portuguesa não passa de uma bravata serôdia.
A ideia inicial foi sempre a de propor como única língua de trabalho o inglês. O que fazia todo o sentido. É sabido que hoje mais de 90 por cento das patentes são directamente redigidas em inglês, porque resultam do labor de grupos de cientistas e investigadores de equipas multinacionais, que adoptaram o inglês como sua “língua franca”. Por outro lado, porque, para afirmar a competitividade europeia no quadro global, é absolutamente determinante ter um regime comum de patente, que seja facilmente acessível a qualquer um dos outros agentes empresariais, científicos e competidores globais. Negar a evidência de que o inglês tem hoje, enquanto veículo de comunicação o papel de autêntica língua franca (embora não francesa…) é o mesmo que negar idêntico estatuto ao latim na Idade Média e até na Idade Moderna. Importa salientar que os alemães em geral aceitavam esta posição. E que mesmo italianos e espanhóis mostravam alguma abertura para não impor a sua língua como língua de trabalho, se a escolha recaísse única e somente no inglês. Sucede, todavia, que os franceses, com o seu habitual escrúpulo francófono, não aceitavam, em caso algum, deixar cair o francês. E, nessa hipótese, os alemães, cuja importância em matéria de patentes era evidente, não abdicavam do alemão. E idêntica posição assumiram espanhóis e italianos, que, porque as suas línguas não foram reconhecidas, acabaram por ficar de fora do Acordo. A posição alemã é compreensível: prescindiriam do uso da sua língua, se se conseguisse o objectivo de fixar uma única língua (o inglês). E a posição italiana ainda poderia ter alguma sustentação, já que 10 por cento das patentes europeias têm origem italiana (embora, como se frisou, a respectiva materialização seja já escrita em inglês). Já a espanhola, só se compreendia à luz de uma profícua indústria de tradução, que muito tinha a perder com este novo regime e de pruridos nacionalistas (ou castelhanistas) equivalentes aos franceses. A solução final foi a que tanto se critica: inglês, francês e alemão, deixando a Espanha e a Itália fora da cooperação reforçada.
2. Confesso que não compreendo o alcance da crítica. A defesa do português não passa por este tipo de “nichos”. Como dezenas de vezes, tentei explicar aos colegas espanhóis, a importância do espanhol e também do português impõe-se por si mesma e não por decreto. É antes do mais um facto demográfico e geopolítico – e por mais que alemães e franceses ponham em letra de forma a possibilidade de uso dos seus idiomas, nenhum desses tratados vai parar a expansão do espanhol ou do português. Não é pela circunstância de a França ser intransigente em cada negociação diplomática que o francês, enquanto língua de comunicação global, deixou de entrar em declínio irreversível. Insisto: não há lei que trave a dinâmica demográfica. Como, aliás, por experiência amarga, tem evidenciado a actual crise migratória...
«O que falta é uma política da língua»
3. A defesa do português faz-se por um ensino competente e exigente da língua nas escolas. Faz mais pela soberania e pela identidade um bom ensino da língua e da história que mais um voto no Conselho Europeu ou um deputado no Parlamento Europeu. Faz-se também e decisivamente pela cooperação – através do envio de professores – com Timor, com a Guiné-Bissau, com Moçambique ou com Macau, onde a língua sofre ameaças. Faz-se pela abertura de institutos de língua portuguesa nas metrópoles globais, nos territórios económicos-alvo, em velhas praças portuguesas (como Goa ou Malaca). Não é em sede de registo de patentes e de outros nichos análogos que se defende o português.
4. Isto leva-nos até mais longe. Haverá alguém que ponha em causa o orgulho nacional sueco, dinamarquês ou norueguês, apesar de serem línguas faladas por um punhado de milhões de pessoas? E de praticamente todos os seus habitantes serem hoje bilingues, falando um inglês de nível altamente satisfatório (especialmente se comparado com o de outros povos)? E de, pasme-se, a grande maioria dos seus políticos se exprimir nas instituições europeias, não na língua nacional, mas em inglês? Com o argumento, de resto, autêntico, de que defendem melhor os interesses dos seus povos fazendo-se entender perfeitamente do que passando por interpretações simultâneas directas ou até consecutivas. Será que os escandinavos são masoquistas e querem destruir a sua cultura e língua?
5. O que falta não é o português no regime das patentes. O que falta – e nunca houve – é uma política da língua, ou melhor, uma política das línguas. Uma política que tenha como primeiro pilar um ensino rigoroso e exigente do português. E que não desdenhe o papel do latim (e do grego) – que começa timidamente a ser recuperado – e que é raiz essencial da nossa língua e cultura. Que tenha como segundo pilar, uma aprendizagem universal, e desde tenra idade do inglês, enquanto língua franca, sem nacionalismos nem patriotismos bacocos. Que tenha como terceiro pilar, a obrigatoriedade de ensino de uma segunda língua estrangeira (de preferência, não a mesma para todos os alunos e cuja oferta deve ter em conta a importância para a nossa rede cultural e comercial). Que tenha como quarto pilar, o fomento do português nas zonas dos países lusófonos em que este está em risco. E como quinto pilar, o investimento no ensino do português em cidades que, pelo relevo económico ou cultural, justifiquem essa aposta. Isto sim devia ser patenteado. E em português.
in jornal "Público" de 18/08/2015, na crónica semanal do autor "Palavra e Poder". Manteve-se a norma ortográfica de 1945, seguida pelo jornal português.