Texto do escritor português Miguel Esteves Cardoso sobre uma fórmula de saudação que está a disseminar-se coloquialmente, no português de Portugal. Texto publicado no jornal Público, em 9 de julho de 2015.
Cada vez me cumprimentam mais com «Boas!». É de manhã e de tarde. Ao princípio pensei que era uma abreviação de «Boas tardes». Há um hábito irritante de dizer «bons dias» ou «boas tardes» quando se encontra mais de uma pessoa. Sendo várias pessoas basta um «bom dia» colectivo. Ou, vá lá, «uma boa tarde para todos».
«Boas tardes» significa um conjunto de tardes boas. Se fosse essa a intenção até seria um cumprimento estimável: «que não só esta tarde seja boa como também, já agora, uma meia-dúzia doutras também.»
Agora «boas» sem mais nada – sobretudo de manhã – quer dizer o quê? Boas entradas (no dia que aí vem)? Que boas coisas lhe aconteçam durante o dia? Que boas são estas horas enquanto ainda estamos vivos?
Lentamente estamos a afastar-nos das (igualmente cansativas mas destituídas de qualquer frisson de novidade) perguntas como «Tudo bem?» ou «Então?». É que essas perguntas tinham o defeito de patrocinar respostas, desde o «Vai-se andando...que remédio...» até longos relatos de desgraças do agregado familiar.
Hoje, perguntar «Como está?» e «passou bem?», que até há pouco tempo eram meras formalidades, isentas de curiosidade ou de empatia, é exprimir uma vontade sincera de ouvir tudo o que aconteceu ao nosso interlocutor desde a última vez que o vimos.
«Boas!» é uma interjeição. Pode dizer-se enquanto se vira as costas. É um resíduo de um cumprimento. É um vestígio de civilização. Ao menos isso. As coisas ainda podem piorar. Mas pouco.
N. E. – As fórmulas de saudação «bons dias», «boas tardes» e «boas noites», embora não ocorram agora com frequência, têm tradição no português, como bem atesta o seguinte comentário de Vasco Botelho de Amaral, entre considerações baseadas em estereótipos culturais, hoje datados mas historicamente interessantes (ver "Bom dia, boa noite, boa tarde" no Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do idioma Português, 1958):
«Bom dia, boa noite, boa tarde. Explica-se talvez por influência francesa (bon jour, bonne nuit, bon soir) a prática, que se vai generalizando, de empregar estas saudações no singular, em vez do tradicional dizer – «bons dias», «boas tardes», etc. [Em português arcaico, bon-dia significava – «dia de bom agoiro» (cf. Revista Lusitana, 29, XXII.] É mais próprio do nosso Idioma o emprego do plural com as expressões bons dias, boas noites, boas tardes.
[...] Quem diz bom dia, boa tarde, boa noite não cai em erro insuportável. A verdade, porém, é que a maneira mais vernácula, mais portuguesa, mais genuína e até mais generosa é bons dias, boas tardes, boas noites. Falando assim, ampliamos os nossos desejos de bem ao próximo, quero dizer, não limitamos o bom augúrio ao momento do encontro ou da despedida: mas vamos mais longe na salvação; queremos abranger não só um dia, uma só tarde ou uma só noite, porém dias, tardes e noites.
Neste ponto, os Romanos eram generosos como os Portugueses.
Como se sabe, em latim, dar os bons dias era ave dicere. Ave! – imperativo de aveo, desejar boa saúde, não por pouco tempo, evidentemente. E as boas noites com vale, valete se traduzem em latim. (Que é como quem diz: - Passai ou passai bem). Claro está que tal desejo não se restringia a um só dia, uma só tarde, uma só noite.
Os Espanhóis também se mostram generosos. Quando se saúdam, exclamam: Buenos días, buenas tardes, buenas noches.
Franceses, Italianos, Ingleses e Alemães são menos expansivos e singularizam o saudar. Em francês – bon jour [sic], bon soir [sic], bonne nuit. Em italiano – buon giorno, buona sera e buona notte. Em inglês – good morning, good day, good afternoon, good evening, good night. Em alemão – guten Tag, guten Abend, gut[e] Nacht.»
Observe-se que Botelho de Amaral comete algumas incorreções no registo das formas francesas e alemãs. Em francês, escreve-se bonjour e bonsoir, sem separação dos elementos que estão na origem destas expressões (cf. Trésor de la Langue Française Informatisé); quanto ao alemão, Botelho de Amaral escreve «"gut" Nacht», mas a forma correta é «gute Nacht» (cf. Duden). Nada disto inavlida o que este normativista diz sobre o português.
Crónica de Miguel Esteves Cardoso publicada com o título Boas! no jornal Público, em 9/07/2015. Texto escrito, e publicado, segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida pelo diário português.