«(...) Tanto bastou para [me] caírem várias reprovações de leitores, todos eles exibindo a favor da sua “tese” imensos autores credenciados, admitindo que a única forma correcta era a de precariedade.»
[Sobre esta controvérsia, ver ainda: Precariedade “versus” “precaridade” + Precariedade, sem aspas + Precariedade... por mais que haja quem a ponha em causa]
É caso para dizer: perdi em todas as frentes. Ou então, pois não se trata de qualquer peleja desportiva, talvez seja de reconhecer: fiquei mal com todos. E a propósito de um tema cuja minha intenção era a de não sequência a uma discussão que continuo a considerar fora das principais preocupações das atribuições de um provedor.
Quando muito, na defesa da língua, o provedor poderá e deverá ser veículo desse debate entre especialistas da matéria. Tenho a obrigação de velar para que a nossa língua seja respeitada pelo “Público”. Mas entendo que devo dar a palavra aos peritos sem intrometer-me directamente a polemizar questões que ultrapassam os meus conhecimentos.
[Na edição do dia 17/08] dava eu conta de uma carta enviada pelo director-geral do Tribunal de Contas a manifestar a sua discordância pelo comentário de «estranha simplicidade» que, como provedor, fizera a propósito do erro que um leitor atribuía à utilização da palavra «precaridade», em vez de precariedade», no texto de um relatório do Tribunal de Contas, largamente noticiado pelo ”Público”, em artigo assinado pelo jornalista Sérgio Aníbal.
O leitor louvava a «coragem» do jornalista que, ao colocar a palavra «precaridade» entre aspas, «ironizava» com o «erro crasso» cometido por uma respeitável entidade. Ao contrário, defendia o director-geral do Tribunal de Contas, José F. F. Tavares, que as duas formas ortográficas eram correctas. E referia em abono da sua «tese» vários autores. Sustentado noutros autores que consultei, pensava eu que a forma correcta era, de facto, «precariedade». Do jornalista Sérgio Aníbal soube que a intenção com a utilização das aspas não era a de ironizar, mas a de referir os termos utilizados pelo relatório do Tribunal de Contas que fazia uma acusação à política orçamental do Governo. Com estes pressupostos, para além de uma carta que enviei ao director-geral do Tribunal de Contas, na intenção de não prolongar a polémica, emiti no PÚBLICO de 24.08.14 novo comentário a aceitar a eventualidade de ambas as formas serem utilizadas.
«Não sinta necessidade de se "penitenciar"...»
Tanto bastou para caírem sobre a minha conduta várias reprovações de leitores, todos eles exibindo a favor da sua «tese» imensos autores credenciados, admitindo que a única forma correcta era a de precariedade. Um leitor critica a minha fácil capitulação perante o director-geral do Tribunal de Contas e desabafa:
«Fiquei desiludido com o tom e a espinha curvada com que respondeu...».
Das autoras Sandra Tavares e Sara Leite que eu citara em minha defesa, a discordância é de outra índole. E “Precariedade... por mais que haja quem a ponha em causa” escrevem: «...Aludindo a uma crítica do director-geral do Tribunal de Contas, lamentou, como recordará certamente, o facto de ter consultado o nosso livro, S.O.S Língua Portuguesa, afirmando que a informação que nele encontrou relativamente à grafia da palavra precariedade estava incorrecta. Eis o excerto do seu texto:
«Baseado nas fontes por mim adoptadas (Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisb
oa, no S.O.S. Língua Portuguesa, da autoria de Sandra Duarte Tavares e Sara de Almeida Leite) malogrei na convicção de que a forma correcta era «precariedade». Afinal, as duas formas são admitidas.»
«Em face das suas palavras, não podemos deixar de lhe pedir que as reconsidere. E o nosso motivo não se prende apenas com o facto de com elas sugerir que o guia de língua portuguesa de que somos autoras o induziu em erro. Gostaríamos, sobretudo, de lhe fornecer bons argumentos para que não sinta necessidade de se "penitenciar" por acreditar que precariedade é a forma mais adequada do nome que designa a qualidade do que é precário.
Já notou, certamente, que a simples atestação de uma palavra num dicionário não significa que se recomenda o uso dessa forma particular, pois muitas vezes trata-se apenas de dar conta de formas desviantes que ainda assim se vão popularizando». (...) E Sara Leite acrescenta: «Com toda a franqueza, também não tenho interesse em gerar ou alimentar polémicas linguísticas (...), mas custou-me aceitar que tomasse como definitivos os argumentos do director-geral do Tribunal de Contas. Não propriamente porque isso nos desautoriza enquanto autoras do SOS, mas sobretudo porque leva a crer que "forma correcta" e "forma admitida" de uma palavra significam o mesmo.»
Agora, aqui, o que posso invocar é a sempre aludida frase de que, efectivamente, o uso da nossa língua é por vezes matreiro. Nunca por nunca quis desautorizar as citadas autoras. Invoquei-as por serem autoras de uma obra que, a par de outras, consulto com frequência para evitar erros.
Seja como for, reafirmo mais uma vez: não estou interessado em manter polémicas sobre questões da Língua entre mim, como provedor, directamente, com o Tribunal de Contas, qualquer outro leitor ou entidade. Posso sentir, isso sim, o dever de ser veículo para colocar a discussão entre aqueles que têm autoridade para tal. Aliás, tinha uma vaga ideia de que este episódio iria ser ocasião para isso.
Sem negar a importância da defesa da nossa língua, provavelmente a maior riqueza do património que nos resta, numa visão cósmica do papel dos media, privilegio o combate que vença este presságio de Martin Amis: o jornalismo «está numa fase peculiar da sua evolução. Por um lado, está cada vez mais satisfeito com o poder que o corrompe; por outro, vai no sentido de uma impotência elefantina relativamente a todas as questões que realmente interessam».
In jornal Público de 30 de agosto de 2014. Respeitou-se a antiga grafia seguida pelo jornal português.