O historiador e comentador político português José Pacheco Pereira manifesta-se contra o novo acordo ortográfico (AO), fazendo uma avaliação política negativa do impacto desta mudança em Portugal (juntaram-se breves notas editoriais a algumas afirmações; manteve-se a ortografia do original).
O acordo ortográfico é uma decisão política e como tal deve ser tratado. Não é uma decisão técnica sobre a melhor forma de escrever português, não é uma adaptação da língua escrita à língua falada, não é uma melhoria que alguém exigisse do português escrito, não é um instrumento de cultura e criação.
É um acto político falhado na área da política externa, cujas consequências serão gravosas principalmente para Portugal e para a sua identidade como casa-mãe da língua portuguesa. Porque, o que mostra a história das vicissitudes de um acordo que ninguém deseja, fora os governantes portugueses, é que vamos ficar sozinhos a arcar com as consequências dele.[1]
O acordo vai a par do crescimento facilitista da ignorância, da destruição da memória e da história, de que a ortografia é um elemento fundamental, a que assistimos todos os dias. E como os nossos governantes, salvo raras excepções, pensam em inglês “economês”, detestam as humanidades, e gostam de modas simples e modernices, estão bem como estão e deixam as coisas andar, sem saber nem convicção.
O mais espantoso é que muitos do que atacaram o “eduquês” imponham este português pidgin, infantil e rudimentar, mais próximo da linguagem dos sms, e que nem sequer serve para aquilo que as línguas de contacto servem, comunicar. Ninguém que saiba escrever em português o quer usar, e é por isso que quase todos os escritores de relevo da língua portuguesa, sejam nacionais, brasileiros, angolanos ou moçambicanos, e muitas das principais personalidades que têm intervenção pública por via da escrita, se recusam a usá-lo. As notas de pé de página de jornais explicando que, “por vontade do autor”, não se aplicam ao seu texto as regras da nova ortografia são um bom atestado de como a escrita “viva” se recusa a usar o acordo. E escritores, pensadores, cronistas, jornalistas e outros recusam-no com uma veemência na negação que devia obrigar a pensar e reconsiderar.
Se voltarmos ao lugar-comum em que se transformou a frase pessoana de que a «minha pátria é a língua portuguesa», o acordo é um acto antipatriótico, de consequências nulas no melhor dos casos para as boas intenções dos seus proponentes, e de consequências negativas para a nossa cultura antiga, um dos poucos esteios a que nos podemos agarrar no meio desta rasoira do saber, do pensar, do falar e do escrever, que é o nosso quotidiano.
Aos políticos que decidiram implementá-lo à força e “obrigar” tudo e todos ao acordo, de Santana Lopes a Cavaco Silva, de Sócrates a Passos Coelho, e aos linguistas e professores que os assessoraram, comportando-se como tecnocratas – algo que também se pode ter do lado das humanidades, normalmente com uma militância mais agressiva até porque menos "técnicas" são as decisões –, há que lembrar a frase de Weber que sempre defendi como devendo ser inscrita a fogo nas cabeças de todos os políticos: a maioria das suas acções tem o resultado exactamente oposto às intenções. O acordo ortográfico é um excelente exemplo, morto pelo “ruído” do mundo. O acordo ortográfico nas suas intenções proclamadas de servir para criar uma norma do português escrito, de Brasília a Díli, passando por Lisboa pelo caminho, acabou por se tornar irritante nas relações com a lusofonia, suscitando uma reacção ao paternalismo de querer obrigar a escrita desses países a uma norma definida por alguns linguistas e professores de Lisboa e Coimbra.
O problema é que sobra para nós, os aplicantes solitários da ortografia do acordo. O acordo, cuja validade na ordem jurídica nacional é contestável, que nenhum outro país aprovou e vários explicitamente rejeitaram, só à força vai poder ser aplicado. A notícia recente de que, nas provas – que acabaram por não se realizar – para os professores contratados, um dos elementos de avaliação era não cometerem erros de ortografia segundo a norma do acordo mostra como ele só pode ser imposto por Diktat, como suprema forma de uma engenharia política que só o facto de não se querer dar o braço a torcer explica não ser mudado.
Porém, começa a haver um outro problema: os custos de insistirem no acordo. A inércia é cara e no caso do acordo todos os dias fica mais cara. A ideia dos seus defensores é criar um facto consumado o mais depressa possível. É esta a única força que joga a favor do acordo, a inércia que mantém as coisas como estão e que implica custos para o nosso défice educativo e cultural.
É o caso dos nossos editores de livros escolares que começaram a produzir manuais conforme o acordo e que naturalmente querem ser ressarcidos dos seus gastos. Mas ainda não é um problema insuperável e, acima de tudo, não é um argumento. Passado um período de transição, pode voltar-se rapidamente à norma ortográfica vigente e colocar o acordo na gaveta das asneiras de Estado, junto com as PPP e os contratos swaps, e muita da “má despesa”. Porque será isso que o acordo será, se não se atalhar de imediato os seus estragos no domínio cultural.
O erro, insisto, foi no domínio da nossa política externa com os países de língua portuguesa, e esse erro é hoje mais do que evidente: os brasileiros, em nome de cuja norma ortográfica foram introduzidas muitas das alterações no português escrito em Portugal, nunca mostraram qualquer entusiasmo com o acordo e hoje encontram todos os pretextos para adiar a sua aplicação.[2] No Brasil já houve vozes suficientes e autorizadas para negar qualquer validade a tal acordo e qualquer utilidade na sua aplicação. Os brasileiros que têm um português dinâmico, capaz de absorver estrangeirismos e gerar neologismos com pernas para andar muito depressa, sabem que o seu “português” será o mais falado, mas têm a sensatez de não o considerar a norma.[3]
Nós aqui seguimos a luta perdida dos franceses para a sua língua falada e escrita, também uma antiga língua imperial hoje em decadência. Querem, usando o poder político e o Estado, manter uma norma rígida para a sua língua para lhe dar uma dimensão mundial que já teve e hoje não tem. Num combate insensato contra o facto de o inglês se ter tornado a língua franca universal, legislam tudo e mais alguma coisa, no limite do autoritarismo cultural, não só para protegerem as suas “indústrias” culturais, como para “defender” o francês do Canadá ao Taiti. Mas como duvido que alguém que queira obter resultados procure no Google por logiciel, em vez de software, ou ordinateur, em vez de computer, este é um combate perdido.
Está na hora de acabar com o acordo ortográfico de vez e voltarmos a nossa atenção e escassos recursos para outros lados onde melhor se defende o português, como por exemplo não deixar fechar cursos sobre cursos de Português nalgumas das mais prestigiadas universidades do mundo, ter disponível um corpo da literatura portuguesa em livro, incentivar a criatividade em português ou de portugueses e promover a língua pela qualidade dos seus falantes e das suas obras. Tenho dificuldade em conceber que quem escreve aspeto – o quê? – em vez de aspecto, em português de Portugal, o possa fazer.
[Notas]
[1] Portugal não está sozinho na aplicação do novo acordo ortográfico (AO), visto que o Brasil está a aplicá-lo desde 1 de janeiro de 2009, em coexistência com a norma ortográfica anterior (Formulário Ortográfico de 1943). Em 2012, houve de facto um adiamento, mas não se tratou de um adiamento da aplicação do AO. O que se verificou foi adiar a data a partir da qual o AO vigorará plenamente no Brasil, o que na prática se traduz pelo prolongamento do período de transição, cujo termo, inicialmente previsto para dezembro de 2012 (Decreto n.º 6583, de 29 de setembro de 2008), foi transferido para 31 de dezembro de 2015 (Decreto n.º 7875, de 27 de dezembro de 2012). Refira-se que, em outubro de 2013, um dos guias do Exame Nacional de Ensino Médio que se realiza nesse país confirma a situação de coexistência entre as duas normas. No momento de redação desta nota, espera-se, portanto, que o AO passe a vigorar plenamente no Brasil a partir de 1 de janeiro de 2016.
[2] Ler nota anterior.
[3] Os gramáticos brasileiros consideram que o português do Brasil tem norma ou normas próprias. Refira-se o exemplo de Evanildo Bechara, que, na sua conhecida Moderna Gramática Portuguesa (Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira/Editora Lucerna, 2009, p. 34), refere uma «norma de correção brasileira»: «Sendo uma língua histórica (todo o português) um conjunto de várias línguas comunitárias, haverá mais de uma norma de correção (o português do Brasil, o português de Portugal, o português exemplar, o português comum, o português familiar, o português popular, etc.)» O linguista J. Mattoso Câmara Jr. (História e Estrutura da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro, Editora Padrão, 1979, p. 29) também encarava o português do Brasil como uma subnorma de uma norma comum, não se confundindo esta com o português de Portugal: "[...] desde o início, [houve] condições novas para uma vida lingüístiuca própria e para o desenvolvimento de uma subnorma, na língua comum, em face do português europeu.» (manteve-se a ortografia original). Finalmente, Celso Cunha, que era brasileiro, e L. F. Lindley Cintra, um português, na Nova Gramática da Língua Portuguesa (1.ª edição, 1984, p. XIII), aceitavam há três décadas a existência de diferentes normas no conjunto dos países onde o português tem estatuto oficial e é língua materna: «A norma pode variar no seio de uma comunidade linguística, seja de um ponto de vista diatópico (português de Portugal/português do Brasil/português de Angola), seja de um ponto de vista diastrático (linguagem culta/linguagem média/linguagem popular), seja, finalmente, de um ponto de vista diafásico (linguagem poética/linguagem da prosa).»
Texto publicado em 18/01/14 no jornal Público. Manteve-se a ortografia original.