Num curioso livrinho Venha comigo aprender Português (Europress, 2002), escreve o seu autor, Pedro da Fonseca:
«Ouvindo a gente certos locutores da nossa Televisão, fica-se envergonhado pela maneira ridícula como se pronunciam algumas vogais. (…) Pronunciam "Êmilia"; 'Hêrculano'; 'êxame'… Evitem apupos e não sujeitem os analfabetos a imitar dislates assim! Dignifiquem o cargo, pois é um dever dos mais relevantes.»
Ora, esta é uma questão da língua portuguesa que considero bem actual e pertinente. Ouve-se, cada vez com mais frequência, na televisão, na rádio, em algumas pessoas "cultas" com quem falamos, pronunciarem 'Hêlena', 'êfectuar', 'êleição', 'êdição', 'êmissão', 'êxacto', 'êxame', 'êxemplo' 'hêrói', etc. etc. A lista seria infindável.
No entanto, a nossa intuição di-lo e a regra confirma-o, que o e átono no início de palavra, antecedido ou não de h e seguido ou não de r, tem valor de i. Claro, se esse e estiver em sílaba tónica, a pronúncia já será a de um e fechado ou aberto, como em erro [/êrro/] ou esta [/ésta/].
Há bem pouco tempo, no programa Páginas de Português da Antena 2, foi este assunto tratado com toda a clareza pelo Professor Fernando Venâncio da Fonseca. Infelizmente, não notei qualquer mudança de atitude em alguns locutores que nessa emissora – que tem particulares responsabilidades – usam e abusam desta pronúncia adulterada, em nome da lógica, e ignorando aquilo que espontânea e correctamente se aprendeu.
É ainda Pedro da Fonseca que diz, na obra já citada:
«Os eruditos e pessoas de cultura, média que seja, travam a Língua ou sujeitam-na a caprichos, o que é desaconselhável.
Portanto, o caminho indicado e até mais seguro é precisamente o do povo analfabeto. Em seus lábios é que a língua se realiza foneticamente, seguindo a evolução, que é sempre natural, fluente, espontânea.
Não haja receio de imitar o seu exemplo, em casos de fonética, no campo da prosódia e no da evolução da própria Língua».
N.E. (27/10/2020) – O preceito segundo o qual e- ou he-, em começo de palavra e seguidos de consoante + vogal (os casos de estar e extra não são, portanto, abrangidos), se pronunciam como [i], quando não recebem acento tónico (edição ou herói), encontra base descritiva na obra do filólogo português Gonçalves Viana (1840-1914), por exemplo, no seu Vocabulário Ortográfico e Ortoépico da Língua Portuguesa (1909, p.XXXIV), onde se lê que «[o] e átono inicial de vocábulo, ou antes de qualquer vogal, vale por i; eminente confunde-se na pronúncia com iminente, desfear com desfiar [...]». Do prisma prescritivo, tem-se sublinhado há mais de um século este aspeto ortoépico, que se mantém, aliás, na descrição da língua destinada a estrangeiros, como faz o filólogo e linguista francês Paul Teyssier (1915-2002), no Manual de Língua Portuguesa (Portugal-Brasil), traduzido e publicado em português em 1989, pela Coimbra Editora. Neste livro, Teyssier observa que o «[...] e átono inicial soa em geral [i], p. ex. enorme pron. [inǫ:rmë], herdar [...] pron. [irda:r], ou mais raramente [ę]» (o autor usa uma notação fonética própria: [ǫ] = ó aberto; [ę] = é aberto; ë = "e" mudo da preposição de). Note-se, porém, que esta característica da chamada "pronúncia normal portuguesa" traz uma confusão, que o próprio Gonçalves Viana menciona: a de se tornarem homófonas palavras com significado diferente como eminente e iminente. Em 1989, Teyssier (op. cit.) chega até a assinalar uma estratégia dos falantes para fugirem à homofonia: «Em algumas palavras eruditas, para evitar as ambiguidades, restitui-se por vezes uma vogal não reduzida [ẹ], p.ex. emigrante [...] pron. [ẹmigrã:të] para a distinguir de imigrante [...] pron. [imigrã:të] [...]» ([ẹ] = "ê"fechado). Mesmo que não se aceite, de acordo com o que se fixou e se tornou tradição, compreende-se que as descrições mais recentes já refiram como padrão de uso entre falantes portugueses mais jovens a pronúncia desse e- inicial átono como "ê" fechado (símbolo fonético internacional [e]). Cite-se, a propósito, a Gramática do Português (vol. III, Fundação Calouste Gulbenkian, 2020, p. 3327): «[...] se para falantes linguisticamente mais conservadores a vogal inicial de erguer, existir, exame, errar, elementar, exemplo, emulsão, eleições, emaranhado e equilíbrio tende a ser [i], para falantes mais novos a prevalência de [e] é notória [...].» Em síntese, pode continuar a recomendar-se que e- (ou he-) inicial átono, seguido de consoante e vogal (existir, Helena), se pronuncie [i], ainda que ao preceito possa começar a faltar sustentação empírica. Com efeito, há dados que apontam para uma mutação profunda, de caráter fonológico, provavelmente operada precocemente em contexto de aprendizagem da língua materna e, portanto, geracional e coletiva, que dificilmente se evita por simples acatamento de uma regra explícita.