Na frase «Não se embarca tirania neste batel divinal», o termo tirania é o sujeito.
Trata-se da realização da voz passiva em português com a partícula apassivante se. No Dicionário Terminológico, é referido o emprego da partícula se como «marcador de uma estratégia de passivização (valor passivo – ocorrendo exclusivamente na terceira pessoa)», sendo dado o seguinte exemplo: «Dizem-se coisas estranhas neste país.»
Efectivamente, em português pode-se fazer a voz passiva por meio do verbo auxiliar ser ou da partícula apassivante se.
Exemplo
Voz activa:
«Os alunos leram histórias belíssimas.»
Voz passiva:
«Foram lidas pelos alunos histórias belíssimas.» (auxiliar ser)
«Leram-se histórias belíssimas.» (partícula apassivante se).
Na voz passiva, em qualquer das situações, o sujeito é «histórias belíssimas».
Usa-se a partícula apassivante normalmente quando o sujeito é um objecto ou um ser incapaz de praticar a acção verbal, sofrendo tal acção, recebendo tal acção (sendo paciente dessa acção), e não se pretende referir quem praticou a acção, não se pretende expressar o agente da passiva.
No caso da frase dada, o termo tirania é o sujeito, e a partícula se desempenha essa função de tornar a frase passiva, uma frase passiva intencionalmente sem estar expresso o agente da passiva, marca desta forma de fazer a passiva.
Este é um caso idêntico ao das conhecidas expressões «vendem-se casas», «arrendam-se apartamentos», «alugam-se barcos», «dão-se explicações». Nestas situações, o predicado — o verbo — tem de ir para o plural, pois o sujeito está no plural: casas, apartamentos, barcos, explicações. É sabido que o sujeito é definido como «o constituinte que controla a concordância verbal». Se, na frase dada, se substituísse o termo tirania por uma palavra no plural, verificar-se-ia que era necessário alterar a forma verbal para a 3.ª pessoa do plural, o que mostra que esse constituinte tirania é o sujeito: «Não se embarcam explosivos neste batel.»
Este assunto é objecto da seguinte nota no Dicionário Terminológico acima referido: «Apesar de o português ser uma língua SVO, é comum o sujeito encontrar-se em posição pós-verbal, como nas frases “Vendem-se casas” (…).»
A forma de fazer a passiva sem auxiliar mas por meio de uma partícula remonta ao latim clássico. Existe uma relação estreita entre a passiva portuguesa com a partícula apassivante se e a passiva latina, que não é formada com um verbo auxiliar, mas com a desinência -r. Filólogos há que explicam que esse -r é o que resta de uma partícula pronominal se, que evoluiu para re pela posição intervocálica. Por exemplo, «escrevem-se (livros)» provém de scribuntur (‹— scribunt + se, com um -u- de ligação). É conhecido o exemplo «Louva-se a virtude», que em latim se dizia virtus laudatur [ ‹— laudature ‹— laudat(u)re ‹— laudat-u-se]. Repare-se que, no latim clássico, o termo virtus está no nominativo, porque é o sujeito. Em português, continua a ser o sujeito: «Louva-se a virtude.» Assim, também nas frases «vendem-se casas» ou «não se embarca tirania», casas e tirania desempenham a função de sujeito, e, portanto, o verbo tem de ir para a 3.ª pessoa (do plural, ou do singular, concordando com o sujeito).
O mesmo acontece no espanhol, em que, na norma culta, esta partícula se mantém o seu valor apassivante. Segundo o Diccionario panhispánico de dudas (da Real Academia Española e da Asociación de Academias de la Lengua Española, Santillana Ediciones Generales, S. L., 2006), pág. 591, existem casos de «oraciones de pasiva refleja (con el verbo en tercera persona del singular o del plural, concertando com el sujeto paciente)», que ocorrem «cuando el verbo transitivo lleva, en la versión activa de la oración, un complemento directo de cosa, o bien un complemento directo de persona no determinado (…) esos complementos directos de la versión activa son los sujetos de la pasiva refleja: «Se cantan cosas torpes e malas» (Cuéllar, Catecismo, 1325), «Se exponen tesis y se buscan argumentos que tengan fuerza persuasiva» (Marafioti, Significantes, 1988), «Se buscan jóvenes idealistas» (Tiempo, 16.4.92).