É próprio do devir das sociedades haver momentos de crise e manifestações de rua. Ora, hoje, a comunicação social portuguesa, favorecendo a poupança de caracteres, reduz qualquer manifestação a uma "manif", forma de origem francesa, segundo o dicionário da Academia das Ciências de Lisboa. Que há de errado com as “manifs”? Nada, na prática, já que manifestar-se é um direito; porém, quando se trata de "manifs" no plural, um problema assoma.
"Manif" e "manifs" admitem-se enquanto estrangeirismos, mas, como palavras portuguesas, não serão estranhos um singular terminado em f e um plural em -fs? Parece que sim, porque se impõem restrições sobre a ocorrência de consoantes em fim de palavra:1 no português europeu, temos a lateral [ɫ], representada por -l em jornal; a vibrante [ɾ], correspondente ao -r de mar; e a fricativa palatal surda [ʃ], escrita como -s, em cais, ou como -z, em capaz.2 Estas palavras correspondem, pela mesma ordem, aos plurais jornais, mares, cais e capazes. Contudo, em posição final, as outras consoantes só ocorrem ou em onomatopeias e interjeições (uf!) ou em estrangeirismos sem aportuguesamento generalizado (self, kebab, rap, hip, spot), tradicionalmente assinalados em itálico ou entre aspas. Do ponto de vista histórico, vemos que muitos desses estrangeirismos se foram aportuguesando mediante a adição de um e (paragógico), entre outras adaptações: beef > bife, club > clube, chic > chique; bifes, clubes, chiques mostram que esse e não se perde no plural.
Os tempos mudaram, é certo, pois "manif" ou "prof", a par dos plurais "manifs" e "profs", são grafias recorrentes.3 E, no entanto… Se "manif" e "prof" rematarem com um ponto, pouco há que dizer, são abreviaturas correctas. Já para serem substantivos «à portuguesa» levantam dúvidas: não deveriam tomar as formas manife e profe, no singular, e manifes e profes, no plural? Se à fonética lusitana se censura o vezo de devorar vogais, deixando das palavras apenas o osso consonântico, para quê reforçar tal tendência, aprovando-a na própria ortografia? Por favor, desenvolva-se um e de apoio à consoante! Que mais não seja, para, em Portugal, reaprendermos a saborear as vogais – na sedução de um sussurro ou num grito de protesto.
1 Sigo a classificação tradicional exposta em Celso Cunha e Lindley Cintra, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (Lisboa, Edições João Sá da Costa, 1984, págs. 41-47). Sobre o inventário de segmentos fónicos do português europeu, consulte-se a resposta O sistema fonético do português.
2 Deve contar-se ainda um pequeno grupo de itens lexicais em [n], grafado como n; p. ex.: íman, hífen, pólen, mácron.
3 De tal maneira, que o próprio Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa da Porto Editora regita manif e prof, fora da secção de estrangeirismos, deixando supor que se trata de itens plenamente integrados no léxico português. Todavia, enquanto manif aparece sem plural, a prof atribui-se o que aqui defendo, profes. Também o Dicionário da Língua Portuguesa da Porto Editora acolhe manif e prof como reduções de manifestação e professor(a), respectivamente, sem indicação dos plurais.