Artigo de Maria Regina Rocha, na sua coluna "A vez... ao Português" do "Diário do Alentejo" de 23 de Janeiro de 2009, sobre a ancestralidades de seis palavras à primeira vista tão diferentes.
A etimologia é a parte da gramática que estuda a origem, a constituição e a evolução das palavras. A investigação etimológica das palavras há muito que tem despertado a curiosidade humana: já Platão, o grande filósofo grego (429-347 a. C.), no seu diálogo Crátilo, tentou investigar se as palavras que designam as coisas têm alguma relação com a natureza destas ou se essa designação é arbitrária. E, embora, segundo Ferdinand de Saussure, o notável linguista suíço (1857-1913), a ligação entre a palavra e o seu significado seja considerada arbitrária, imotivada, o certo é que as palavras pertencem a uma família e têm relações de sentido umas com as outras por vezes já desconhecidas da generalidade dos falantes hodiernos. (…) Vamos escolher algumas destas palavras, vulgarmente utilizadas, e mostrar como se relacionam palavras que, à primeira vista, parecem tão diferentes, como desafiar e fé, candidato e acender ou considerar e siderado.
Desafiar é um verbo por vezes utilizado no sentido de convidar ou de sugerir (exemplo: "desafiar alguém para um passeio"), mas genericamente com o significado de lançar uma provocação, provocar, espicaçar ("desafiar para um duelo, para uma corrida"), ou, ainda, buscar, expor-se propositadamente a ("desafiar o perigo"). Ora o verbo desafiar é formado de fiar (que significa, etimologicamente, ter confiança, acreditar), sendo o seu significado original "deixar de confiar" e, decorrente disso, "provocar para o combate", o que originou o referido significado genérico de provocar. Resta acrescentar que o verbo fiar provém do latim fidere, verbo da família do substantivo fides, fé, em português, sendo este étimo latino visível, por exemplo, nas palavras fiel, fidedigno e fidelidade.
Fé ou confiança em alguém é o que temos quando escolhemos um candidato a um cargo público. E um candidato a servir os outros é, ou devia ser, uma pessoa sincera, pura, honesta. É precisamente este o significado primitivo da palavra candidato. Dizem-nos vários autores, entre eles, Rodrigo de Sá Nogueira (Questões de Linguagem, 1934), que no tempo dos romanos esta palavra designava os pretendentes a cargos públicos, pois estes apresentavam-se vestidos de branco, simbolizando a pureza, a honestidade. No latim, o adjectivo candidatus, com o significado de "vestido de branco", era formado de candidus, branco brilhante, imaculado, que originou em português a palavra cândido, que congrega os significados de alvo (branco), inocente, puro, ingénuo. Ora estas palavras eram formadas do verbo candere, que significava estar em brasa, aquecer até se tornar branco, sendo este verbo (veja-se o radical) da família das palavras candeia, candelabro, acender e incêndio.
Considerar é um verbo utilizado hoje na acepção de ponderar, julgar, examinar, ter em conta. Provém do verbo latino considerare, formado de con + sidera (plural de sidus, que significava grupo de estrelas, constelação). Segundo Alexandre de Carvalho Costa (Reflexões Etimológicas, 1941), "tal vocábulo testemunha a existência da antiquíssima superstição de ligar o aspecto dos astros com os conhecimentos terrenos. Os antigos consultavam, entre outras coisas, os astros, para saberem se uma empresa seria ou não bem sucedida". Considerar, originariamente, significava, pois, contemplar os astros, examinar os astros, o que levou à acepção, ainda em latim, de examinar com cuidado, ver com atenção, olhar com respeito, pensar, meditar. Há algumas palavras portuguesas em que está presente o radical da palavra latina sidus, sideris, tais como sideral e sidéreo (relativo aos astros).
Curiosamente, o verbo siderar também pertence a esta família: significa fulminar, atordoar, evolução do significado latino de "sofrer a influência dos astros". Quem sofria a influência dos astros ficava siderado, ou seja, sem reacção, fulminado, em sentido figurado, atónito, perplexo...
in "Diário do Alentejo" do dia 23 de Janeiro de 2009, na coluna "A vez…ao português".