Compreendo que o Governo português tem um compromisso político-diplomático, assumido em 2004 pelo Governo de então, que dificilmente lhe permitiria não ratificar o II Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico, independentemente de discordâncias que porventura tenha quanto ao seu conteúdo. Certamente por isso, e não apenas por questões de carácter pragmático ligadas à sua implementação no terreno, a presente ratificação faz-se acompanhar do pedido de uma moratória de seis anos para a sua aplicação. Teria sido preferível pedir mais tempo, que, a meu ver, o Governo deveria aproveitar para procurar encontrar consenso diplomático com vista à revisão do Acordo.
E por que precisa ele de ser "emendado"? Por várias ordens de razões, todas culturais, em última análise:
1 - Por razões técnico-linguísticas e culturais:
Como já foi abundantemente demonstrado pela comunidade linguística, pelo menos desde 1990, o Acordo manifesta inúmeras fragilidades. Relevo apenas dois aspectos:
a) O facto de acabar por nem sequer se revelar uma "versão fraca" de unificação ortográfica, como se pretendia, mas antes uma versão permissiva, erigindo o princípio da facultatividade excessiva, o qual vai contra o próprio conceito normativo de ortografia, originando nomeadamente a possibilidade do uso de duplas grafias dentro do mesmo país, isto é, abrindo a porta à heterografia.
b) O facto de recorrer a uma diversidade de critérios na simplificação de preceitos ortográficos, com forte desrespeito pela dimensão patrimonial da língua, nomeadamente a sua dimensão histórica etimológica; ora a língua, é bom lembrá-lo, é definida na Lei de Bases do Património Cultural como um bem cultural, que, portanto, importa preservar e salvaguardar.
2 - Por razões político-diplomáticas e culturais:
Quase vinte anos volvidos sobre o Acordo e num quadro bem distinto no seio da CPLP, no que à situação político-social de Angola e Moçambique diz respeito e também no que ao caso particular de Timor se refere, impor-se-ia uma revisão do Acordo que atentasse à urgente necessidade de uma descrição linguística das variantes africanas do português, muito particularmente no caso daqueles dois países africanos que envolvem cerca de 30 milhões de falantes, cuja norma ortográfica é, recorde-se, a do português europeu. Uma tal descrição permitiria que o Acordo não se limitasse a ser o que na prática é, um acordo entre o Brasil e Portugal, mas um efectivo "acordo" entre pares.
Isso poderia ser acompanhado da garantia, hoje não assegurada, de que todos os países da CPLP, envolvidos numa vontade renovada, poriam o Acordo em funcionamento em simultâneo.
Ora, não estando garantida tal simultaneidade, como ficou claramente patenteado nas declarações do ministro da Cultura de Moçambique aquando da recente visita do nosso Presidente da República àquele país, corre-se o risco perverso de se transformar um instrumento que se quer estratégico de agregação num possível factor de desagregação com a eventual criação de outros blocos de variantes linguísticas que coloquem, por hipótese, Portugal e o Brasil de um lado e os PALOP de outro.
Acresce a tudo isto que, entre 1990 e hoje, não foi cumprido um objectivo estipulado pelo Acordo, prévio à sua entrada em vigor: a organização e publicação de um Vocabulário Técnico-Científico que impedisse ou ajudasse a travar a forte deriva lexical que se vem sentindo entre a norma europeia e a brasileira.
3 - Por razões económicas e culturais:
A expansão internacional de uma língua não se faz nem por facilitações ortográficas bebidas em critérios fonéticos em detrimento de critérios etimológicos nem por unificações ortográficas estabelecidas por decreto, como as línguas inglesa ou francesa abundantemente revelam, mas sim pelos conteúdos que for capaz de veicular (através da literatura, da música, enfim da cultura). É por aí que passa uma verdadeira política de internacionalização de uma língua e não pelo logro da facilitação fonética da ortografia. Logro tanto maior quanto o critério acima referido da facultatividade vai criar maior dúvida grafémica em quem pretende aprender o português. Não será o Acordo que fará o português ganhar um único leitor, um só falante ou o direito a ser língua veicular num único forum internacional.
Acresce a este facto que o mercado do livro no espaço lusófono, e muito especialmente nos PALOP, tornar-se-á mais difícil de conquistar para a indústria editorial portuguesa e, consequentemente, os conteúdos culturais portugueses que os nossos livros veiculam terão mais dificuldade de penetração, designadamente ao nível das indústrias culturais e criativas, nos PALOP. Em síntese, a internacionalização da cultura portuguesa em África será mais difícil.
Estou ciente de que o bom senso político-cultural acabará por imperar através de acções concertadas que apelem à revisão do Acordo: revisão por certo desejada pela maioria dos linguistas e por todos quantos têm responsabilidades na defesa do património cultural; revisão com certeza esperada por alguns dos PALOP.
in DN, 2 de Junho de 2008