DÚVIDAS

Ainda o algum de «Em caso algum haverá pena de morte»

Ao ler por curiosidade a Constituição da República Portuguesa, deparei-me com o artigo 24.º, parágrafo 2, que refere que:

«Em caso algum haverá pena de morte.»

A frase despertou-me algumas dúvidas e resolvi fazer uma busca no vosso site. Foi então que reparei que, já antes, Pedro Andrade, de Braga, tinha colocado uma questão sobre o referido parágrafo.

Ao contrário do sr. Andrade, não tenho qualquer dúvida quanto à semântica da frase e interpreto-a como um repúdio total da pena de morte pela legislação portuguesa.

Fiquei, isso sim, com dúvidas quanto à sintaxe da frase, uma vez que se trata de uma frase declarativa negativa sem a presença de qualquer elemento de negação. Estou familiarizado com a expressão «em caso algum», mas pensava que não era de uma correcção linguística suficiente para poder ser utilizada num documento como a Constituição.

Explica o Ciberdúvidas na resposta a Paulo Andrade:

«[...] posposto a um substantivo, algum assumiu, na língua moderna, significação negativa, mais forte do que a expressa por nenhum»

Sou, assumidamente, um leigo em linguística. No entanto, há três questões que me assaltam após ler a explicação do Ciberdúvidas:

1. A língua moderna existe por oposição a quê? À língua clássica? Como se distingue uma da outra em pormenores tão ínfimos? O bué, fazendo parte da língua moderna, teria lugar na Constituição?

2. «A palavra algum assumiu...» Assumiu? Como? Será que foi por abuso de linguagem ou porque se trata simplesmente de um coloquialismo? De novo, este tipo de expressões não deveria ser evitado na redacção da Constituição?

3. Significação mais forte. Como é que se mede a força dos pronomes indefinidos? Se se tratasse de adjectivos, eu até entenderia, mas escapa ao meu entendimento como é que esta explicação tão subjectiva pode justificar o emprego de tal expressão na Constituição.

Aceito e compreendo perfeitamente que os colaboradores do Ciberdúvidas não têm possibilidade absolutamente nenhuma de saber o que se passava dentro das cabeças dos membros da Assembleia Constituinte e, como tal, estão impossibilitados de responder literalmente às minhas perguntas.

No entanto, queria despedir-me com duas dúvidas concretas:

1. As frases «Em caso algum haverá pena de morte» e «Não haverá pena de morte em caso algum» estão ambas correctas? Se sim, como é possível que tenham o mesmo significado quando uma é a negação clara da outra?

2. Como se explica a versatilidade do pronome algum por oposição ao seu antónimo nenhum? «Em caso algum haverá pena de morte» é, aparentemente, o equivalente a dizer «Em caso nenhum haverá pena de morte» (ignorando, claro está, a "força" dos pronomes), ao passo que «Em algum caso haverá pena de morte» é exactamente o oposto de «Em nenhum caso haverá pena de morte». Há alguma regra escrita que aluda a este facto?

Peço imensa desculpa pelo longo texto e espero que o Ciberdúvidas tenha alguns minutos para me elucidar.

Resposta

As três primeiras perguntas feitas pelo consulente são pertinentes, mas deve ter-se em atenção que a aceitação de um uso não acarreta a de todos os usos: prevê-se por isso que bué ainda tenha de esperar bastante tempo até chegar ao registo formal e especializado. Já o caso de algum me parece relevar de outra ordem, envolvendo factores sintácticos e semânticos.

O que acontece com «em caso algum» parece-me semelhante à colocação de palavras e expressões negativas que surjam no começo de uma frase. O valor negativo (ou a polaridade negativa) é normalmente marcado pelo advérbio de negação não, seguindo-se depois as expressões negativas, uma vez que em português existe a dupla negação (ao contrário do inglês normativo):

1.

(a) «Não haverá pena de morte em nenhum caso.»
(b) «Não haverá pena de morte em caso nenhum.»
(c) «Não haverá pena de morte em caso algum.» 

O contraste é mínimo entre as frases em 1: no entanto, em 1(a) parece salientar-se apenas o conjunto de casos existentes, enquanto em 1(b) e 1(c) também se contempla o conjunto de casos possíveis; mas a diferença entre 1(b) e 1(c) esbate-se completamente, podendo-se considerá-las sinónimas.

Quando as expressões sublinhadas em 1 são deslocadas para o começo da frase, segue-se a regra geral que impede duas marcas de negação antes do verbo de uma frase; por conseguinte, não se emprega o advérbio não:

2.

(a) «Em nenhum caso haverá pena de morte.»
(b) «Em caso nenhum haverá pena morte.»
(c) «Em caso algum haverá pena de morte.»

Em 2(c) mostra-se que a expressão negativa se comporta do mesmo modo que 2(a) e 2(b). Note-se que o valor negativo de algum só emerge quando se encontra posposto ao substantivo que determina (nos exemplos, o substantivo caso).

Isto mesmo está descrito no Dicionário Houaiss, embora sem salientar que a possibilidade de ocorrência de nome + algum no começo da frase dispensa a presença do advérbio não:

«como pron. indef., tem função adj., precedendo ger. o subst.; quando posposto, mesmo quando não ocorre partícula negativa (não, sem etc.), tem o sentido de nenhum (p. ex.: dinheiro algum acalmará sua consciência; não tinha motivo algum para insultá-lo).»

Como se vê, os exemplos do Dicionário Houaiss indicam que não só se usa se a expressão negativa surgir depois do verbo de uma frase.

Posto isto, respondo directamente às duas últimas perguntas do consulente:

1. «Em caso algum haverá pena de morte» e «Não haverá pena de morte em caso algum» são frases correctas, cada uma evidenciando uma estrutura de negação diferente. Pelas razões atrás expostas, são frases sinónimas.

2. «Em caso algum...», «em caso nenhum» e «em nenhum caso...» são expressões equivalentes quanto ao valor de negação. No caso de algum, é a colocação pós-nominal no constituinte frásico que indica o valor negativo. Se a posição for pré-nominal, o valor não é de negação e, então, sim, algum é antónimo de nenhum: assim se explica que «Em algum caso haverá pena de morte» seja negado não só por «Em nenhum caso haverá pena de morte», mas também por «Em caso nenhum haverá pena de morte» e, claro está, «Em caso algum haverá pena de morte».

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