Na 20.ª emissão do programa de televisão Cuidado com a Língua!, foi utilizada – correctamente – a construção «eram encarregados» [«Deu-se este nome aos soldados que, pelas suas qualidades, eram encarregados do comando de uma esquadra, fazendo, como tal, serviço de cabos»], na explicação da origem da expressão «de cabo da esquadra».1
Embora o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de Rebelo Gonçalves (1940) registe o termo encarregue, esta palavra é referida na Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira como pertencendo ao registo popular, não aparecendo na generalidade dos dicionários actuais. O seu uso é mesmo desaconselhado por autores como Vasco Botelho do Amaral (Grande Dicionário de Dificuldades e Subtilezas do Idioma Português, 1952), D'Silvas Filho (Prontuário Universal – Erros Corrigidos de Português, 1997) ou Edite Estrela (Saber Escrever, Saber Falar, 2004). Trata-se de uma forma eventualmente criada por analogia com entregue (de entregar).
Por outro lado, o particípio passado encarregado aparece referido no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (2001), com os seguintes exemplos: «Ficou encarregado de fazer o jantar para todos»; «Estava encarregado da organização do ficheiro.»
Está, pois, correcto dizer-se «eram encarregados» ou «estavam encarregados», tal como «tinham encarregado».
De referir, no entanto, que a dúvida do consulente tem razão de ser. Efectivamente, existem em português vários verbos que têm dois particípios passados, como, por exemplo, aceitar (aceitado, aceite), eleger (elegido, eleito), prender (prendido, preso), salvar (salvado, salvo). E, nestes casos, a forma regular (terminada em -ado ou -ido) é geralmente utilizada na formação dos tempos compostos com o auxiliar ter («tem aceitado»), enquanto a forma irregular é habitualmente utilizada com os auxiliares ser e estar («foi aceite», «está aceite»).
1 «A origem da expressão "de cabo de esquadra" reside na figura do cabo de esquadra. (…) Cabo de esquadra é a designação de um extinto posto militar, abaixo de sargento e acima de anspeçada. Na antiga organização do nosso exército, anspeçada (“o anspeçada”) era uma graduação militar acima do soldado e abaixo do cabo. (…) Depois, deu-se este nome aos soldados que, pelas suas qualidades, eram encarregados do comando de uma esquadra, fazendo, como tal, serviço de cabos. Eram escolhidos entre os melhores soldados da fileira, embora analfabetos. Passaram, então, a chamar-se “cabos de esquadra”, para especificar que tinham passado do serviço normal do exército para uma esquadra: ascenderam ao posto de cabo, mas de esquadra. (…) Geralmente, provinha da população rural e inicialmente não tinha habilitações escolares. Por isso, passou a usar-se a expressão “de cabo de esquadra” quando os argumentos não tinham fundamento.»