Sobre os verbos dicendi, um artigo de Ana Martins no semanário Sol.
Escolher a palavra certa, em função da estrutura da frase, do sentido e do género do texto, é uma tarefa cognitivamente complexa e só aparentemente banal.
Para cobrir um dado domínio conceptual há várias palavras disponíveis. Por exemplo, para referir o acto de dizer/falar, há um lato inventário de verbos. Há verbos que particularizam o tipo de texto que é produzido (contar, relatar, descrever, argumentar); há outros que especificam o movimento empreendido no diálogo (rectificar, objectar, atalhar); outros há que graduam a amplitude vocal da elocução (gritar, murmurar, sussurrar) ou que mencionam o modo de articulação das palavras na cadeia falada (balbuciar, tartamudear); há ainda outros que fazem um juízo sobre a pertinência do conteúdo do dito (tagarelar, desconversar) ou que veiculam informação sobre os efeitos da elocução junto do interlocutor (tranquilizar, desencorajar). Enfim, os exemplos não acabam. Por isso, acrescentem-se a estes aqueles verbos que servem, num romance, para construir o perfil da personagem: «— Tens ali uns embrulhos! — rosnou a asquerosa senhora.» (Eça de Queirós, A Relíquia); «— Por São Tiago de Compostela! — ganiu D. Bias.» (Olavo Bilac e Pardal Mallet, O Esqueleto); «O padrasto mugiu: — Doente nada! Eu curo a doença dele.» (Rachel de Queiroz, Dôra, Doralina).
No texto noticioso, a escolha do verbo de acção linguística está relativamente simplificada. Por força do estilo e da deontologia, o jornalista selecciona um verbo a partir de um grupo limitado. Mas, mesmo assim, frequentemente, não lhe acerta.
Ao lermos «Uma sondagem que a SIC acaba de divulgar argumenta que o Partido Socialista ganharia (…)» (DN, 8/6/09) ficamos a saber que as sondagens, se falassem, argumentavam.
Em «Testemunhas precisaram que centenas de polícias e milícias do Bassidj foram enviadas (…)» (Lusa, 29/6/09) relativizamos: numa época em que tudo se mede em milhões, talvez que «centenas» venha a ser um número preciso.
E, finalmente, diga-me o leitor quem foi aqui o profeta da desgraça: «"Acredito mesmo que vou fazer uma marca excepcional", profetiza [Obikwelu] (…)» (Público, 7/8/08).
Nota: Francis Obikwelu falhou a qualificação olímpica para a final dos 100 metros, após o que pôs termo à sua carreira.