«A escola, que tão mal ensina a escrever, não ensina, de todo, a falar.» Quem o afirma é José Saramago, que citamos a partir de afirmações recolhidas pelo diário "Correio do Minho". O autor do "Memorial do Convento" critica a decadência e defende a reinvenção da Língua Portuguesa.
«(...) Gostaria de saber, por exemplo, que causas se congregaram para que o português escrito, e presumo que também falado, tivesse atingido um grau tão elevado de precisão e beleza no século XVIII e que enfermidades o atacaram depois e o trouxeram, salvo algumas intermitências fulgurantes (Garrett em primeiro lugar), a esta outra crisálida em que se está organizando não sei que insecto linguístico, por todos os indícios e demonstrações, provavelmente um mutante (...)»
«(...) Hoje, uma língua que não se defenda, morre, não de morte súbita, mas irá caindo aos poucos num estado de consumpção que poderá levar séculos a consumar-se, dando em cada momento a ilusão de que continua viva, e por esta maneira afagando a indolência ou mascarando a cumplicidade, consciente ou não, dos seus suicidários falantes.»
Saramago diz que não ousa «duvidar da competência dos professores que a ensinam, nem da irreprimível vontade que certamente habitará na alma dos estudantes, e ainda menos duvidaria da excelência científica e pedagógica dos programas.» O escritor admite que estaria a retirar a ele próprio os motivos de carácter imediato que «explicariam o baixíssimo nível de conhecimentos e a confrangedora inépcia com que gerações de estudantes de todos os graus lidam com sua língua natal quando a escrevem e quando a falam.»
Lembra, contudo, o que para ele é uma «obsessão»: «(...) A escola, que tão mal ensina a escrever, não ensina, de todo, a falar. (...) A aprendizagem elementar da fala e o desenvolvimento da língua estão entregues às famílias, ao meio técnico e cultural em que a criança vai crescer, o que, em si mesmo, não é um mal, uma vez que é assim que costuma decorrer todo o processo de aprendizagem, pelo exemplo e pela exemplificação, sucessivos e constituidores (...). A escola, ao não intervir no processo de edificação da fala, demite-se de uma responsabilidade que deveria reivindicar, e, pelo contrário, vai receber o influxo negativo dos surtos degenerativos externos, oficializando assim, indirectamente, o vicioso e o errado contra o exacto e o harmonioso.»
«(...) É facilmente verificável que a escola não só não ensina a falar, como fala mal ela própria (...).»
Por isso, Saramago propõe a «temerária sugestão de introdução duma disciplina de História da Língua a partir dos dois ou três últimos graus do ensino básico.»
O escritor diz que se surpreende «ao ver que a História da Literatura se estuda como se o suporte dessa literatura não fosse a língua, como se fosse indiferente, para cada época literária, o estudo correcto do processo de transformação desse mesmo suporte», como «se não houvesse relação directa entre uma impressão que se quer comunicar e o instrumento que tornará a expressão dela possível.»
Desejaria «uma escola que ensinasse, de facto, a escrever e a falar, uma escola que fizesse da História da Língua a matéria vertebradora por excelência de uma formação humanística que revitalizasse as maltratadas línguas em que as pessoas se comunicam reinventando-as todos os dias no espírito de cada estudante.»
Extracto do jornal "Correio do Minho", suplemento "Sábado", dia 28 de Fevereiro de 1998