Os clássicos e a língua - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Os clássicos e a língua

Os nossos clássicos escreviam com lenteza, e com vagar é que compunham. Não podem, pois, ser devorados de um trago, como os livros de hoje, improvisados num laço.

Aquilo que com vagar se compôs, durante anos se castigou e poliu, do esboço à derradeira mão, guarda sempre coisas e ideias subentendidas, elipses e segredos mentais, e rascunhos de palimpsestos, sentimentos inescritos, outrora claros e hoje invisíveis, que é mester subentendidos, aclarados, decifrados, ressuscitados, enfim, na própria atmosfera em que brilharam à luz.

Não é, pois, compreendê-los o mero rastejar pela rama sem penetrar o subsolo, que era outrora ao lume da terra, e no qual agora se sepultam profundos como raízes.

Naquele evo, a medida era outra e outra a balança do mundo. A guerra e a Fé imperavam, e, ao crepitar do lume doméstico, outras histórias não se contavam que as dos soldados e dos monges.

E só assim, a quem faça a experiência de alma daquele tempo, é que os clássicos poderão ser exemplares de clareza e suavidade. Então, ó surpresa e milagre!, tudo se ressurge e se anima. A floresta mirrada reverdece e desabotoa toda em flor; revivem os pastores e os monges, os cavaleiros e os santos; acordam todos os ecos das fontes, e dos ventos que andavam movendo os álamos e as madressilvas...

E, superior a todas, acorda a voz do homem, do poeta e do artista, com as suas ricas e copiosas caudais de eloquência e poesia, com o seu estilo breve ou erguido, galante ou fero, em todo o luzimento de seus mais finos quilates.

Foi essa, decerto, a língua do pequenino Portugal, que, como flor perfumada, rebentou na extremidade da árvore do mundo antigo, – flor que havia de voltar a corola e o pólen para os oceanos desconhecidos.

Foi essa, e não outra, a língua que primeiro praguejou com a tempestade oceânica, e a primeira que traduziu a alma das imensas distâncias – a saudade...

Foi também a primeira que com os seus destemidos Lusíadas, bracejando sobre as ondas, levou o anúncio da Fé e da Civilização às terras incógnitas… Porque muito maior que as civilizações que se sepultam com as suas ciências e vaidades, é aquela que ama, e se reproduz, e se revê nos filhos e na eternidade da História.

E como, pois, dizer que a língua dessas almas e dessas energias, à qual (como dizia João de Barros) pertenciam a monarquia do mar e o tributo dos infiéis, não é mais digna do progresso e do presente?

A verdade é que nós e o presente não somos mais dignos dela. À energia dos que fecundaram os desertos e fundaram novas pátrias, sucede agora o frio terror de perdermos a que temos – e talvez a não sabemos ter.

Já se exalta o que impiamente rouba a alma alheia de outras literaturas, e não se poupam tolos escárnios ao que dispõe das riquezas maternas que por direito de herança lhe pertencem.

Esse confronto é como um alvorecer de evidências malsãs. Seja. Mas não se chame progresso a expiação ou a má fortuna daqueles que há quatro séculos eram capitães, e hoje não podem ou não querem ser mais do que soldados e bandoleiros.

Fonte

"Páginas de Estética", Lisboa, 1905, in "Paladinos da Linguagem" vol. III, Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1923.

Sobre o autor

João Ribeiro (Laranjeiras, 1860 – Rio de Janeiro, 1934) foi um jornalista, crítico literário, filólogo, historiador, pintor e tradutor brasileiro. Foi professor de história e, como jornalista, trabalhou no jornal Época e no Correio do Povo. Foi membro da Academia Brasileira de Letras e um dos principais promotores do acordo ortográfico de 1907. Das suas obras, destacam-se: História do Brasil (1901), Estudos filológicos (1902), Cartas devolvidas (1926) e Os Modernos (1952).