A inteireza do espírito começa por se caracterizar no escrúpulo da linguagem.
A vida parlamentar, a administração e o jornalismo têm sido, em toda a parte, os mais poderosos corrutores da língua e do bom-gosto.
Aspirar à clareza, à simplicidade e à precisão sem um bom vocabulário e uma gramática exacta, seria querer o fim sem os meios.
Nem sempre, quando se pauta a escrita pelo fio da gramática, se tem dado conta da mão, no escrever bem, e no escrever para o povo. Há gramáticos provectos, filólogos consumados, que nunca escreveram senão com pena de chumbo em papel borrador. Não pecando contra a gramática, poder-se-á pecar, todavia, contra a boa linguagem. Um livro pode não infringir materialmente as leis da concordância e da regência, e, contudo, não estar redigido vernaculamente. A lexicologia e a sintaxe não são tudo num idioma.
Cada língua tem no seu génio uma força de espontaneidade e selecção, um critério de acerto e um tipo de beleza, que se exercem, ou se enunciam, pela simplicidade e o instinto dos que a falam. É essa intuição da vernaculidade, esse como que sexto sentido, o da linguagem, que parece ter por órgão o ouvido, e do ouvido recebe o nome.
A história das transformações e nacionalizações de certos vocábulos estrangeiros não favorece a teoria dissolvente daqueles que, exagerando essa mutuação de serviços entre as línguas vivas, não conhecem barreira à introdução dos estrangeirismos, e das negligências de bons escritores tiram argumento para a legitimação de absurdos, enormidades ou bastardias inadmissíveis.
Todos os idiomas vivos permutam uns com os outros. Seria desatino recusar esses subsídios, tão inestimáveis quão imprescindíveis, que se mutuam as línguas, enquanto não fossilizadas. Condenar, pois, em absoluto os estrangeirismos, fora não ter senso-comum.
Refugar os neologismos insensatos, incorrectos ou informes não é proscrever o neologismo.
Com a pureza exterior se identifica o sentimento da decência em todas as criações intelectuais vazadas na palavra humana; e, quanto maiores elas forem, mais delas exigirá o seu decoro; já porque, sendo a língua o veículo das ideias, quando não for bebida na veia mais limpa, mais cristalina, mais estreme, não verterá estreme, cristalino, límpido, o pensamento de quem a utiliza.
Não convertamos em espantalho o nome de arcaísmo. Todas as gerações assistem ao reabrir de palavras antiquadas, que outra vez, ao influxo de novos tempos, rebentam de seu, espontâneas e belas, sob a pena dos escritores de bom-gosto. Com os arcaísmos a lei é a mesma que a respeito dos neologismos: usarem-se discretamente, quando necessários ou úteis.
Guardadas as leis, talvez indefiníveis, mas sentidas e instintivas, do bom-gosto, as da propriedade e conveniência no escolhê-los, as da moderação no usá-los, as da oportunidade no tentá-los, as do tacto no expô-los, de modo que a frase, onde se insinuam ou encavam, lhes alumie e patenteie o sentido - insigne serviço, fazem os bons escritores à sua língua, reempossando-a no gozo de vocábulos e torneios antigos, deixados esquecer por injustos desprezos do tempo.
O gosto da antiguidade levado ao arcaísmo – isto é: a mania de rejuvenescer inutilmente formas anacrónicas, ininteligíveis ao ouvido comum na época em que se exumam, com o vão intuito de as modernizar - avulta entre os mais ridículos e insensatos vícios do estilo, no falar idiomas vivos.
Os elementos da palavra humana são ocasionados a eclipses, ou letargias, seguidos, quando menos se espera, das suas revivescências. Condenados às vezes como obsoletos, eis que ressurgem à vida, quando se imaginava estarem-se fossilizando entre os resíduos mortos do idioma, como renovos de primavera ao prestígio da boa prosa, ou ao encanto da poesia inspirada.
Elemento de regeneração, quando sensatamente disciplinado, no vocabulário das línguas, esse aroma de antiguidade que do hábil emprego das boas locuções antigas se desprende, é um dos segredos da graça e força nos escritores de grande raça, nos estilistas de escola, nos renovadores do gosto literário, nos criadores de obras de arte duradoiras.
Nada mais arbitrário que a temeridade e o aprumo com que as ditaduras filológicas, exercidos pelo dicionário, ou pela gramática, desvalijam a língua de gemas inestimáveis, removendo-as como antigualhas e fósseis para os arquivos e museus da curiosidade inútil.
Ensinam economistas que a moeda espúria, onde quer que se admita, expele da circulação a boa moeda. Como que o mesmo ocorre nas línguas, entre os vocábulos de contrabando e os de lei. Em se pondo a vogar um termo de má nota, que pela novidade atraia os amigos da moda, todos os seus sinónimos correntes, de bom toque e peso, se vão esquecendo e sumindo.
Quando um termo desaparece da circulação de um idioma, não se pode saber se o esquecimento em que se adormentou, se o abandono em que se sumiu, é morte, ou hibernação. Todo aquele que restitui ao comércio dos vivos uma velha expressão desusada, tem o direito de abrigá-la à sombra dos seus títulos de nascimento e legitimidade. Se lha rejeitam, poderá ser à conta de obsoleta. De bastarda é que não.
Não há língua definitiva e inalteravelmente formada. Todas se formam, reformam e transformam continuamente.
Nem sempre alguns exemplos de boa procedência bastam a autorizar uma sintaxe. Se ela é palpavelmente incorrecta ante o próprio uso clássico e a índole da língua, cumpre ver naquelas anomalias simples nódoas, dessas a que os melhores escritores não são imunes.
Às vezes até na prosa as convenções gramaticais, por severas que sejam, têm-se de amoldar aos ditames da eufonia ou da ênfase, que também fazem lei e, em certos casos, lei suprema da linguagem.