Um diálogo numa sala de aula, em Luanda, a propósito do emprego dos pronomes que e quem – em mais uma crónica do jornalista Edno Pimentel, na sua coluna “Professor Ferrão”, publicada no semanário angolano “Nova Gazeta”, de 9/01/2014.
Foram meus estudantes no ano passado e sempre se sentaram nas primeiras carteiras com o intuito de «não deixar nada escapar», embora nem sempre fosse possível. Os do fundo da sala, acho que pela sua localização geográfica na turma, prestavam muito mais atenção e compreendiam melhor as lições do que os próprios ‘beateiros’.
Este ano, os jovens que mais se destacavam a criar um centro preparatório onde muitos dos seus colegas passaram a ter explicação para os exames de acesso ao ensino superior.
Entusiasmado e feliz com o sucesso das aulas de preparação, não hesitei em ceder uma gramática e um dicionário e em contribuir, quando possível, com alguns esclarecimentos sobre português.
Numa certa altura, Doroteia, uma das explicadoras, apresentou uma questão que tinha sido levantada por um dos alunos, acusado de escrever uma redacção com palavras obscenas.
«Não fui eu que fiz essa composição, professora», defende-se. «E esta aqui, de quem é?», questiona Doroteia. «Essa, professora, é nossa. Fomos nós quem a fez para si», respondem dois alunos.
Para uma boa parte das quase quatro dezenas de explicandos, a frase dos colegas parecia «um insulto, uma clara demonstração de ignorância» e, em coro, ecoaram: «Fomos nós quem quê?»
«Sim, fomos nós quem a fez”, repetiram. A professora mantinha-se calada à espera que os estudantes inconformados apresentassem os argumentos pró e/ou contra o discurso contestado.
«Alto aí», pede a professora. «Vamos por partes. Não me parece haver qualquer problema no que os colegas disseram! O que se passa é que nós estamos acostumados a errar. Este, sim, é o problema», continua.
«Há duas orações na frase. Na primeira oração, “fomos nós”, o sujeito é “nós” e o verbo precisa de concordar com a 1.ª pessoa. Na segunda oração, contudo, podemos ter duas opções: que ou quem.
Se seleccionarmos que, o seu antecedente é ‘nós’ da oração anterior, e a concordância será “que fizemos”. Se optarmos por quem, este é um pronome de terceira pessoa, e a concordância será “quem fez“. Portanto, “fomos nós que fizemos” ou “fomos nós quem fez”».
Outros textos de Edno Pimentel sobre o português de Angola
in semanário Nova Gazeta de Luanda, publicado no dia 6 de janeiro de 2014 na coluna do autor, "Professor Ferrão". Manteve-se a grafia anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.