Sobre as orações relativas sem antecedente expresso:
[Pergunta] Antes de mais nada, parabéns pelo site. Sei que já analisaram questão parecida antes, mas gostaria muito de nova análise, com cautela. Posso até estar errado, mas preciso dividir isso com pessoas mais capazes que eu. A primeira vez que li em uma gramática que o quem é um pronome relativo sem antecedente, achei um absurdo. Explico por quê: é sempre possível substituir tal pronome (que, para mim, é um simples pronome indefinido) por uma locução pronominal indefinida "quem quer que" ou "seja quem for que". Assim, não há o porquê de malabarismos analítico-nomenclaturais ao quem, tão perpetuados, qual dogma, por grandes mestres (eles fazem moda... mas o tempo passa). Exemplo: "Quem comigo não ajunta espalha" ou "A presidenta só convida quem tem potencial"; `alguns` vão dizer que o quem é um relativo sem antecedente, mas `qualquer um´ sabe que a substituição por uma locução pronominal indefinida é muito acertada e reflete o uso da língua: "Seja quem for que comigo não ajunta espalha" e "A presidenta só convida `quem quer que´ tenha potencial". Assim, não há relativo sem antecedente coisa nenhuma (na minha cabeça de falante, e culto), o que há é um mero pronome indefinido.
[Resposta] Tem razão o caro consulente em grande parte do raciocínio que teve a amabilidade de partilhar conosco. Porém, não vislumbro razões para que a designação mais tradicionalista relativos indefinidos (aplicada aos pronomes quem e onde), dependendo dos contextos, não continue a ser utilizada, apesar de, aparentemente, as gramáticas e os estudos mais recentes a não usarem de forma tão recorrente. [...]
Eu: Por que «em grande parte»? Por que «dependendo dos contextos»? Em todos os contextos em que o QUEM (relativo indefinido) aparece, pode ele ser satisfatoriamente substituído por uma locução pronominal indefinida («quem quer que», «seja quem for»), atestando assim o que ele de fato é: um pronome indefinido, e nada mais que isso. Não entendo por que ficar mancando em uma análise e nomenclatura caducas.
Pedro: «De fato, esta nomenclatura permite, creio eu, resolver parte do problema delineado pelo consulente, pois, efetivamente, na maioria dos casos em que não existe antecedente explícito, o pronome quem pode ser substituído por uma locução pronominal indefinida (tal como o consulente bem sublinhou) e apresentar, portanto, características de pronome indefinido.»
Eu: O senhor diz «na maioria dos casos», mas o fato é que EM TODOS OS CASOS é possível substituir satisfatoriamente o QUEM por QUEM QUER QUE/SEJA QUEM FOR (locuções pronominais indefinidas). Inclusive, nos exemplos que você coloca logo a seguir, os relativos sem antecedente podem ser substituídos tranquilamente por locuções pronominais indefinidas.
Pedro: «Lindley Cintra e Celso Cunha (tal como Evanildo Bechara), por exemplo, na Nova Gramática do Português Contemporâneo (p. 346), falam em pronomes relativos sem antecedente (ou relativos indefinidos = quem e onde), dando como exemplos as seguintes frases: "Quem tem amor, e tem calma, / tem calma... não tem amor... [...]"; "Passeias onde não ando, / Andas sem eu te encontrar.".
Eu: «Não quero me sobrepor aos grandes mestres, mas até suas opiniões passam, como tudo na vida. Veja: “Quem quer que/Seja quem for que tem amor, e tem calma, tem calma... não tem amor... (...)”. Eu juro que eu não sei quem popularizou tal análise de modo que TEMOS DE VER o que não há para ver, a saber: chifre em cabeça de cavalo. Por que afirmar que o QUEM é um relativo sem antecedente se ele é um mero pronome indefinido, facilmente substituível por QUEM QUER QUE/SEJA QUEM FOR...? A tradição nos tolhe! Ou eu não estou vendo algo.
Pedro: «Contudo, e aqui residirá uma outra vertente da questão apresentada pelo consulente, de imediato, os citados gramáticos têm o cuidado de dar conta da seguinte importante nota: "Nestes casos de emprego absoluto dos RELATIVOS, muitos gramáticos admitem a existência de um antecedente interno, desenvolvendo, para efeito de análise, quem em aquele que, e onde em no lugar em que. Assim, os exemplos citados se interpretariam: "Aquele que tem amor...[;] Passeias no lugar em que não ando...".»
Eu: Olha o malabarismo argumentativo usado para o ‘homem’ sustentar o dogma! Veem-se coisas que não existem, e (eu pasmo!) argumentam vetustamente para uma ‘viagem’ se tornar real. Desculpe se me exaspero, mas não há ‘aquele que’ no lugar de ‘quem’, há apenas o ‘quem’, pronome indefinido.
Pedro: «Entroncando nesta linha de raciocínio, e no seguimento de reflexões propostas por Ana Maria Brito, na sua dissertação de doutoramento de 1988 (A sintaxe das orações relativas em Português), o professor e investigador Telmo Móia propôs, em 1992, para este tipo de construções, de forma que me parece sensata e cristalina, a designação orações relativas sem antecedente expresso:
O trabalho de investigação que aqui apresento tem como tema um subtipo de orações relativas — habitualmente designadas por relativas livres ou relativas sem antecedente — que tem sido objecto de estudo por parte de diversos autores nos últimos anos. [...] Vejamos dois exemplos, sublinhados nas frases que se seguem:
(1) Quem conhece o Luís sabe que ele é um rapaz sensato.
(2) O professor elogiou quem leu o livro.»
Eu: O senhor vai-me perdoar, mas «Quem quer que conhece o Luís sabe que ele é um rapaz sensato» e «O professor elogiou quem quer que leu o livro» (ou «O professor elogiou quem quer que tenha lido o livro»). Não percebe que essas palavras todas para defender um antecedente hipotético são um desperdício de tempo?! Se há uma substituição óbvia de QUEM por QUEM QUER QUE, SEJA QUEM FOR, por que, Meu Deus, por que os malabarismos argumentativos em cima de um hipotético antecedente não expresso? Força da tradição?
Pedro: «O aspecto sintáctico que identifica este subtipo de orações relativas é o facto de não existir na estrutura em que se inserem um antecedente nominal realizado, donde a designação de orações relativas "sem antecedente". A ausência de um antecedente expresso distingue estas orações relativas das que ocorrem sublinhadas nas frases seguintes:
(3) As pessoas que conhecem o Luís sabem que ele é um rapaz sensato.
(4) O professor elogiou as pessoas que leram o livro.
Como se pode observar, existe nestas frases, ao contrário do que acontecia em (1) e (2), uma expressão nominal — (as) pessoas — que serve de antecedente à oração relativa. Por isso, as relativas destas frases são por vezes designadas orações relativas com antecedente (termo que se opõe ao de orações relativas sem antecedente com que se designam as relativas das duas primeiras frases).
No entanto, conclui Telmo Móia, na verdade, mesmo nas chamadas orações relativas sem antecedente, existe "um antecedente nominal na estrutura, embora não realizado lexicalmente."»
Eu: É bonito isso, mas a beleza está na simplicidade da permuta: QUEM = QUEM QUER QUE, em quaisquer casos.
Pedro: «Assim sendo, as designações de "relativa livre" e "relativa sem antecedente" não parecem ser as mais adequadas para designar estas orações, parecendo-me preferível a designação, que doravante utilizarei, de orações relativas sem antecedente expresso (A Sintaxe das Orações Relativas sem Antecedente Expresso do Português, Dissertação de Mestrado em Linguística Portuguesa Descritiva apresentada à Universidade de Lisboa Faculdade de Letras, Lisboa, 1992, pp. 1-3).»
Eu: Nem uma, nem outra. Mais simples que isso.
Quem conhece o Luís sabe que ele é um rapaz sensato.
ORAÇÃO SUBORDINADA SUBSTANTIVA SUBJETIVA JUSTAPOSTA
O professor elogiou quem leu o livro.
ORAÇÃO SUBORDINADA SUBSTANTIVA OBJETIVA DIRETA JUSTAPOSTA
Pedro: «Esta terminologia, proposta e trabalhada por Telmo Móia, acabou por ser a adotada por Maria Helena Mira Mateus e outros, na edição de 2003 da Gramática da Língua Portuguesa (pp. 675-676 e seguintes): "Orações relativas sem antecedente expresso ou `relativas livres´ [...]. Observando exemplos como: (1) Quem vai ao mar perde o lugar; (2) Recebi quem tu recomendaste».
Eu: (1) QUEM QUER QUE VAI AO MAR PERDE O LUGAR. (2) RECEBI (RECEBEREI) QUEM QUER QUE TU RECOMENDASTE.
Pedro: «Finalmente, creio que valerá a pena dizer que a este exato tipo de construções chama, por exemplo, o Dicionário Terminológico — DT (2008) orações subordinadas substantivas relativas, já que estas são introduzidas por pronomes relativos (nomeadamente, quem, o que, onde, quanto) que podem «ocorrer no mesmo contexto em que ocorrem constituintes que desempenham as funções sintácticas de sujeito (ii), de complemento directo (iii), de complemento indirecto (iv), de complemento oblíquo (v) e de modificador do grupo verbal (vi).
(ii) [Quem vai ao mar] perde o lugar.»
Eu: [Quem quer que vai (vá) ao mar] perde o lugar.
«(iii) O Luís procura [quem o ajude na escola].»
Eu: O Luís procura [quem quer que o ajude (venha ajudá-lo)] na escola.
«(iv) O Pedro pede dinheiro a [quem tiver].»
Eu: O Pedro pede dinheiro a [quem quer que tiver (tenha)].
«(v) O avô precisa de [quem cuide dele].»
Eu: O avô precisa de [quem quer que cuide dele].
«(vi) Ela compra roupa [onde calha].».»
Eu: Ela compra roupa [onde calha (oração subordinada adverbial locativa)]
Pedro Mateus :: 07/07/201
Pedro, não me leve a mal, mas precisamos pensar a língua com mais simplicidade sempre quando der. E dá! Neste e em outros casos!
Paz!
Cf. O pronome quem e o indefinido «seja quem for» II (Pedro Mateus); O pronome quem e o indefinido «seja quem for» III (Fernando Pestana); O pronome quem e o indefinido «seja quem for» IV (Pedro Mateus); O pronome quem, indefinido relativo (Virgílio Dias)