Sim, responde o nosso consultor D’Silvas Filho, concordando com a recomendação1 da Fundación del Español Urgente (Fundéu), como fazíamos referência na Abertura de 13/04 p.p. Muito diferente – acrescenta – de «tragédia “humanitária”, que vai mais longe no sentido pretendido: há nesta expressão desumanidade (podendo ser intencional: atrocidade, crueldade, selvajaria, ou incidental com os mesmos efeitos).»
Tradicionalmente, as aceções de “humanitário”, na nossa língua, são sobretudo: filantropo e relativo à crença de que a obrigação moral é promover o bem-estar da humanidade. Repare-se, porém, que a palavra vem do francês humanitare, com o sentido de «relativo à humanidade»; e que esta última palavra em Portugal tem o sentido não só de bondade, benevolência, piedade, mas também o de «características da natureza humana».
Quanto à expressão «crise humanitária», pode-se estar a querer significar a ideia de que «não há humanitarismo (bondade, etc.) no evento ou na atitude»... mesmo sem haver propriamente desumanidade. No sentido original de humanidade para humanitário, pode significar simplesmente uma crise na qual as características da natureza humana não são atendidas. A expressão «crise humanitária» parece-me aceitável, mesmo sem a justificação de que a crise requeira «a intervenção de organizações humanitárias», pois estas podem nem sequer ter conhecimento ou acesso.
Já «tragédia “humanitária”» vai mais longe no sentido pretendido: há nesta expressão desumanidade (podendo ser intencional: atrocidade, crueldade, selvajaria, ou incidental com os mesmos efeitos). Só que este grupo nome-adjetivo encerra em si um paradoxo no sentido habitual dos dois termos, e compreende-se que Ciberdúvidas o tenha rejeitado: pois o que é trágico, não se compreende que seja humanitário. Quando se esquecem as características analíticas da língua e se ligam palavras em conceitos novos, podem surgir sentidos inesperados.
Concordo com a posição expendida há muito no Ciberdúvidas; forçando a redundância, preferiria a expressão: «uma tragédia desumana» ou, se se quiser expressar melhor o sentimento, escreveria: «uma tragédia, um crime contra o humanitarismo» (não só não existe humanitarismo, mas os factos que existem são-lhe mesmo tragicamente contrários, no sofrimento das pessoas).
Só que ninguém é dono da língua, e os falantes vão adaptando-a sempre ao uso atualizado, e simplificando a mensagem na comunicação. Repare-se como o paradoxo é muitas vezes altamente expressivo na língua, como no caso de «fuga para a frente». Ora a mensagem: «crime trágico contra o humanitarismo» a verdade é que fica muito intensamente focada no contrassenso «trajédia “humanitária”». E quem sou eu para o condenar?
Lembra-me a oposição do saudoso Prof. Neves Henriques contra o “despoletar” com o sentido de começar alguma coisa (quando, dizia, o sentido era essencialmente tirar uma espoleta para não haver a ação do explosivo). Ora os falantes forçaram o sentido condenado, e este já aparece nos dicionários (dar ocasião a, desencadear ação).
Resumindo, penso que verdadeiramente condenáveis são os erros francamente grosseiros.2 Nos outros desvios, deve-se, sim, recomendar vivamente que se respeite a pureza da língua, segundo os cânones tradicionais..., mas sem condenações intolerantes.
1 «Crisis humanitaria, expresión válida. La expresión crisis humanitaria es válida para aludir a las catástrofes de origen natural o humano que requieren la intervención de organizaciones humanitarias.
En principio, la palabra humanitario significa ‘bondadoso y caritativo’ y ‘que busca el bien de todos los seres humanos’ y resulta un contrasentido en el contexto de un suceso que hay que lamentar, pero el giro puede considerarse una extensión válida por la falta de una expresión clara y concisa en español que aluda a este tipo de situaciones, generalmente asociadas a desastres naturales, conflictos o violencia generalizada y desplazamientos de población.
Este es el caso de «A los crímenes de guerra les ha seguido la catástrofe humanitaria, con centenares de miles de personas perdidas en el desierto sin víveres, sin agua, andando descalzos», en el que al drama humano que supone una guerra se le añade la ulterior crisis humanitaria.
Se trata de un uso asentado en el derecho internacional humanitario que se ha trasladado a la lengua general, tal como recoge el diccionario combinatorio Redes, que señala que el vocablohumanitario se emplea con sustantivos que designan situaciones de dificultad, adversidad o infortunio, a menudo con resultados trágicos, como catástrofe, crisis, desastre y drama. De todas las variantes en uso, la preferida por los organismos internacionales es crisis humanitaria.
Es impropio emplear estas expresiones en situaciones de emergencia en las que no se dan circunstancias descritas o como meros sinónimos de catástrofe terrible, enorme desastre, gran tragedia o drama humano, como en «La muerte de los 15 inmigrantes de la patera es el segundo desastre humanitario de este tipo en pocos días».
2 Erros grosseiros como, por exemplo os indicados aqui.
N.E. (agosto de 2021) — A confusão no emprego de ambos os adjetivos voltou a ser recorrente com o regresso a poder dos talibãs no Afeganistão e o cenário subsequente em matéria dos direitos das mulheres, nomeadamente. Erradamente, por exemplo, quando se refere que a ONU alerta para crise humanitária no Afeganistão e certo quando se escreve "Tragédia Humana iminente" no Afeganistão, ou no caso do acolhimento de refugiadas afegãs: Empresas portuguesas que querem contratar afegãs dizem que vai ser aberto corredor humanitário.