D’Silvas Filho estabelece aqui o que (não) deve ser seguido na elaboração de um vocabulário ortográfico da língua portuguesa (VOLP), em Portugal, à luz das novas regras do Acordo Ortográfico (AO) de 1990. Críticas e recomendações ao que já foi publicado, neste texto escrito originalmente para a página da Sociedade da Língua Portuguesa, na Internet. Nota final do autor: «Este texto foi integralmente escrito no Acordo de 1990. Tem 885 palavras. Excluindo os exemplos do novo AO, tiveram de ser alteradas só onze (e uma está repetida).»
1. Respeitar o texto do Acordo de 1990
Justifica-se este critério, visto o Acordo de 1990 ter sido subscrito pelos países que o aprovaram, e qualquer alteração que o contrarie exige, em princípio, novo acordo. Não se deve contrariar o texto ou o espírito da prescrição estabelecida no AO. Todas as alterações prejudicam a união na língua que se pretende com o novo AO. Assim, no português europeu são inaceitáveis o "coerdeiro" do VOLP brasileiro ou o "cor de rosa" do VOLP da Porto Editora, pois estão taxativamente co-herdeiro e cor-de-rosa no texto do Acordo de 1990.
2. Coerência no texto do acordo
A necessidade de respeitar o texto não impede que se escolham soluções coerentes. É o caso, por exemplo, do vocábulo destróier, que desobedece à prescrição de não se acentuar o ditongo oi nas paroxítonas, mas obedece à regra de as acentuar quando terminam em r, regra que prevalece. Aceita-se, porém, a incoerência gráfica resultante de se ter adotado o critério fonético (Egito, mas egípcio).
3. Atender à tradição
Deve-se preservar a tradição ortográfica refletida nos formulários e vocabulários oficiais anteriores, quando das omissões do texto do Acordo. Para o VOLP destinado ao português europeu, é conveniente ter sempre presente a história das palavras e a etimologia para que a língua se adapte a várias pronúncias.
No Vocabulário para o português europeu, deve-se respeitar a índole da língua, não a adulterando com grupos de letras, acentos ou arranjos sintáticos completamente estranhos à raiz do nosso idioma. É o caso dos st e sc iniciais, subserviência atual ao inglês; notando-se: que do inglês já estão estabilizadas na língua estoque, estêncil, estandardizar; que os brasileiros têm estresse, estique, estafe, etc.; que o st inicial latino sempre se converteu em es (ex.: stadiu- > estádio) e que sc inicial foi banido da língua em 1931 (ex.: scientia > ciência).
Neste aspeto de respeitar a história das palavras, por muita vontade que se tenha de inovar, deve-se continuar a distinguir (do sentido positivo das palavras) os referentes: «sentido figurado», «aderência de sentidos», ou a «unidade semântica particular», nas ligações com hífen dos compostos (ex.: tirados do texto do AO, respetivamente: água-de-colónia [não é uma água, e é o hífen que permite a minúscula no topónimo], tio-avô (não só tio nem só avô), mais-que-perfeito [uma designação que invoca, no conjunto, um referente antigo]).
Atender à tradição evita que surja uma oposição generalizada da parte das pessoas extremosas com a língua, evita um desencontro entre gerações e, sobretudo, a revolta de comunidades numerosas, que insistam em escrever na norma ortográfica substituída.
4. Simplificação
Um dos objetivos do acordo de 1990 foi simplificar a língua. Assim, também nos termos agora escolhidos para o VOLP destinado ao português europeu se deverá optar pela simplicidade, quanto possível. No entanto, simplificar só pelo desejo de mudar, sem que haja uma vantagem óbvia, ou que até traga prejuízo para a comunicação, é condenável. Deve-se simplificar só o que for indispensável e necessário.
Nada impede, porém, que se apresentem sugestões no VOLP para o português europeu, aproveitando o ensejo de o novo AO permitir duplas grafias.
Por exemplo, poderia sugerir‑se que nos compostos do texto do AO tipo azul-escuro (subs.-adjec.) no sentido positivo, se aceitassem de futuro as grafias sem hífen: “azul escuro”.
Outro exemplo: foi vantajosa a eliminação do acento nas terminações verbais ‑eem, e em pera, pero, polo; mas prejudicial para a comunicação a supressão do acento na flexão pára do verbo parar, porque pode facilmente coexistir com a preposição para num discurso e fazer confusão (ex.: «ele para, para deixar passar»). Se existem as opções pôr e por, -ámos e ‑amos, pelo mesmo motivo, e forma e fôrma sem justificação aparente, não se vê que não possam existir as opções pára e para.
Notar que o Acordo de 1990 já tem mais de 20 anos e, entretanto, a linguística não estacionou.
De qualquer forma, as sugestões alternativas devem aparecer sempre como variantes não preferenciais, em relação àquilo que está taxativamente estabelecido no texto do novo AO.
5. Unidade
Portugal esteve parado na atualização oficial do seu vocabulário desde 1970 (salvo a ação meritória de alguns lexicógrafos, de que destacamos, por exemplo, José Pedro Machado no Grande Dicionário da Língua Portuguesa, projeto da Sociedade da Língua Portuguesa). O Brasil, por seu lado, foi editando amplos vocabulários da sua também língua portuguesa. O VOLP brasileiro de 2009, para o novo AO, da Academia Brasileira de Letras, é a 5.ª edição deste trabalho (uma monumental obra com 350 000 entradas).
Tendo sido o primeiro (e em linhas gerais respeitando todos estes pontos acima indicados), o VOLP brasileiro deve ser sempre considerado nas variantes recomendadas para o português europeu (exemplos do VOLP brasileiro: hifens, toalete e as palavras acima indicadas: estresse, estique, estafe, voltando a sublinhar que já temos estoque, estêncil, estandardizar); mas sermos intransigentes nas nossas variantes próprias (exemplo: abrupto, co-herdeiro, húmido, etc.). Este critério de respeito pelo VOLP brasileiro destina-se a evitar duplas grafias desnecessárias e se conseguir a máxima unidade na língua, objetivo fundamental do Acordo de 1990.
NOTA FINAL
Este texto foi integralmente escrito no Acordo de 1990. Tem 885 palavras. Excluindo os exemplos do novo AO, tiveram de ser alteradas só onze (e uma está repetida).
Texto publicado nas páginas do sítio da Sociedade da Língua Portuguesa.