DÚVIDAS

Voz reflexiva arrevesada

No Brasil, a voz reflexiva correta dos verbos está cada vez mais esquecida na linguagem coloquial, de tal maneira, que frases como: «Quando se é criança, vê-se o mundo com outros olhos», «Se se trabalha muito, melhora-se de vida», «Fica-se estarrecido com a corrupção dos políticos», «Quem mata deve ser condenado à morte», «Quem não trabalha também não tem o direito de comer», «Quem é ladrão deve ir para a cadeia» passam a ser da seguinte forma: «Quando você é criança, você vê o mundo com outros olhos» ou «Quando você é criança, vê o mundo com outros olhos», «Se você trabalha muito, você melhora de vida», «Você fica estarrecido com a corrupção dos políticos», «Se você mata, você deve ser condenado à morte», «Se você não trabalha, também não tem o direito de comer», «Se você é ladrão, você deve ir para a cadeia».

Quem diz a voz reflexiva dessa maneira arrevesada, o faz quando está conversando com outra pessoa. Observe-se que, nos três últimos casos, podem-se gerar mal-entendidos, pois o interlocutor pode entender que está sendo chamado de assassino, vagabundo ou ladrão, ficando por isso mesmo ofendido.

Como se pode perceber, se é substituído por você. Quando o primeiro termo é usado, a frase torna-se geral, alguma coisa que se aplica a todos, que vale para todos. Creio ser esta mesma a finalidade da voz reflexiva.

Todavia, quando o segundo termo é utilizado, embora a intenção seja dizer algo que valha para todos, não se diz assim, pois a palavra você faz com que o que foi dito valha só para a pessoa com quem se fala.

Sobre tudo isto aqui ventilado, peço os comentários e os esclarecimentos desse credibilíssimo sítio. Gostaria outrossim de saber se essa inovação seria mais uma influência do inglês na língua portuguesa. Ficaria feliz também se me dissessem se tal fenômeno de linguagem ocorre também aí em Portugal.

Muito agradecido.

Resposta

O que descreve é um uso que também se verifica noutras línguas, por exemplo, no inglês ("you never know" = «nunca se sabe») ou no castelhano. Embora não seja corrente em Portugal, este emprego pode bem reflectir a exposição do português do Brasil a línguas em que existem o tu ou o você impessoais. Mesmo assim, a norma brasileira não aceita, por enquanto, esta construção, a avaliar pela sua ausência na Moderna Gramática Portuguesa, da autoria do reputado gramático brasileiro Evanildo Bechara.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa