Embora certos termos nos pareçam inadequados a algumas frases, não podemos esquecer-nos da importância do tipo de texto ou de discurso em que os mesmos estão inseridos. Se se tratar de um discurso vulgar, do dia-a-dia, de um texto informativo, expositivo, argumentativo, de opinião... cujas características o enquadrem num texto não-literário, em que o que se pretende é que a sua mensagem seja compreendida pelo público, que não jogue com os vários sentidos das palavras e cuja leitura não implique um trabalho de análise, então, todo o desvio linguístico é tido como uma incorrecção, porque viola e/ou subverte a norma instituída e, consequentemente, coloca em risco a tradição de uma língua. Mas sempre que se trata de algo artístico, literário, como é o caso de um texto poético, enquanto obra que se afirma pela pluralidade de leituras e pela carga simbólica dos signos, a liberdade da escrita não pode ser encarada como um erro, pois, aí, o desvio é intencional e está impregnado de sentidos. Num texto literário joga-se não só com o significado e significante, mas também com o valor melódico, com o ritmo, com tudo o que o que pode sugerir, com as conotações que se podem retirar... É o que acontece com o texto que o consulente apresentou. Habitualmente, usamos a palavra converter quando queremos passar a ideia de uma acção em que houve uma transformação, uma mudança (de credo religioso, político, de ideias...), sentido que se pode retirar do excerto do poema, uma vez que parece pressupor-se uma ideia de transformação «das forças em soluços». Mas, se utilizasse o verbo «converter», o sujeito poético estaria a formular de forma directa uma ideia. Não estaria a sugerir o processo, as sensações por que passou. Ao passo que, ao escolher o signo verter, passa-nos uma série de sentidos e não um só, que seria o caso do verbo converter. Verter transparece, imediatamente, a imagem de algo líquido, da abundância e a força das suas lágrimas, como se ele próprio se tornasse em água, perdendo a sua forma física. Apelando aos significados de verter, vem-nos à memória «derramar», «jorrar», transbordar», «espalhar», para além de «traduzir de uma língua para a outra». Assim, ao seleccionar este verbo, o sujeito poético jogou com a pluralidade dos seus sentidos, misturando o traduzir-se (transformar-se) as forças em soluços, transferindo-nos a sensação das lágrimas a correr abundantemente e, ao mesmo tempo, o som dos soluços. Com uma só palavra teve a arte de passar três ideias... se não forem mais!