De facto, tem corrido muita tinta sobre este assunto, não só em Portugal mas também no estrangeiro. Ambas as formas de pluralizar contam com adeptos e detractores ferrenhos. O que o consulente vai encontrar nestas linhas é uma opinião pessoal, a qual, no entanto, ao contrário de muitas que por aí se lêem sobre a matéria, resulta de pesquisa e não de meras conjecturas. Como de latim se trata, convém sempre ir ad fontes, para tentar encontrar pistas que nos orientem.
Em primeiro lugar, importa conhecer o significado exacto da expressão «curriculum vitae», para depois tentarmos descortinar como a pluralizavam os autores clássicos, se é que a pluralizavam.
O primeiro termo não era muito frequente em latim. Trata-se de um diminutivo de currus (= carro), pelo que o significado original seria «carrinho». No seguinte passo de Quintus Curtius Rufus (Hist. 8, 14, 8, 1-3) encontra-se abonada essa acepção: «turbati equi [...] in amnem praecipitavere curricula» (= «os cavalos, assustados, precipitaram os carros no rio»).
Neste caso, o rio indica-nos que não se trata de carros de corrida. No entanto, o vocábulo cedo passou a abarcar também os carros de competição e, por metonímia, a própria corrida de carros, como se depreende dos seguintes passos de Titus Livius (Urb. 45, 33, 5, 3) e Quintus Tullius Cicero (Mur. 57, 3), respectivamente: «curricula equorum» (= «corrida de cavalos») e «quadrigarum curriculum» (= «corrida de quadrigas»).
Não parou aqui a evolução semântica, pois o termo passou a designar o próprio terreno ou espaço percorrido pelos cavalos, ou seja, o que hoje, em português, chamamos pista, como mostra o seguinte exemplo de Aulus Gellius (Noct. 1, 2, 2, 1): «curriculum stadii»(= «a pista do estádio»).
Como quem corre numa pista segue determinado percurso, o vocábulo abarcou também o conceito de percurso, particularmente o espaço percorrido pelo Sol e pela Lua, os astros mais conhecidos na antiguidade, como verificamos na seguinte abonação de Apuleius Madaurensis (Met. 7, 1, 2): «candidum solis curriculum» (= «o percurso resplandecente do Sol»).
Continuando a sua evolução semântica, o termo acabou por vir a significar o tempo necessário para completar um percurso, ou seja, a respectiva duração. É o que se depreende do seguinte passo de Marcus Tullius Cicero (Carm. v. 2): «curriculumque Aries aequat noctisque dieique» (= «no signo de Carneiro o dia passa a ter a mesma duração que a noite»).
No seguinte passo de Apuleius Madaurensis (Met. 10, 35, 18-19), o sentido de curriculum é simultaneamente espacial e temporal: «ultimam diei metam curriculum solis deflexerat» (= «no seu percurso, o Sol dobrara a última meta do dia»).
Chegados a este ponto, estamos habilitados a traduzir com mais propriedade o seguinte passo de Marcus Tullius Cicero (Rab. Perd. 30, 9), onde aparece finalmente a expressão que motivou a pergunta do nosso consulente: «exiguum nobis vitae curriculum natura circumscripsit, immensum gloriae» (= «a natureza restringiu-nos o percurso de vida, mas não impôs limites ao da glória»).
Menos conhecida é a seguinte frase do mesmo escritor, talvez por se encontrar numa obra traduzida (Tim. 12): «ille qui recte atque honeste curriculum vivendi a natura datum confecerit» (= «quem tiver completado com rectidão e honestidade o percurso de vida concedido pela natureza»). Aqui figura a expressão «curriculum vivendi», que é uma variante da referida anteriormente («vitae curriculum» ou «curriculum vitae»).
Ou seja, «vitae curriculum» ou «curriculum vivendi», na visão do egrégio escritor latino, é propriamente o percurso de vida que nos é concedido pela natureza e que nos cabe percorrer da melhor forma.
«O percurso de vida»: é este o significado de «curriculum vitae»! Sabemos, no entanto, que esta expressão, muitas vezes representada pelas iniciais CV, se refere actualmente a uma informação estruturada, mais ou menos pormenorizada, sobre a sucessão de factos que caracterizam a carreira profissional de determinado indivíduo, com indicação dos cargos desempenhados, habilitações académicas e profissionais, obras ou resultados produzidos, etc. Como esta sucessão de factos se desenrola ao longo do «percurso de vida», não é difícil vislumbrar a via metonímica seguida pela alteração semântica desta vetusta expressão latina. Neste caso, porém, não se trata de extensão de sentido, mas, sim, de restrição, pois o «percurso de vida», felizmente, abarca factos e factores muito para além do que se inclui em qualquer CV, mesmo no mais completo e minucioso...
Tinha a língua latina a expressão «cursus honorum» (= «sucessão de cargos»), muito mais adequada para exprimir o actual conceito de CV, mas foi «curricum vitae» que pegou, e agora não há volta a dar-lhe, pois a expressão imiscuiu-se em muitas e variadas línguas, embora não seja universal. Os alemães dizem Lebenslauf (= «corrida da vida»), e nos Estados Unidos é frequente o termo résumé, de origem francesa, que os russos também adoptaram (резюме).
Entendida a questão do significado e da origem, importa tentar esclarecer a dúvida sobre a pluralização. Como foi referido no início deste artigo, ambas as formas indicadas pelo consulente são hoje em dia abonadas e criticadas por inúmeros intervenientes. Os defensores de «curricula vitarum» (= «os percursos das vidas») alegam que, se cada currículo trata de uma vida, vários currículos tratam necessariamente de várias vidas, pelo que se impõe a pluralização de vitae. Os partidários de «curricula vitae» (= «os percursos de vida») contrapõem que a pluralização de vitae, por se tratar de um genitivo, empresta à expressão um sentido diferente do pretendido, passando aquela a significar que cada currículo trata de várias vidas...
Alguns adversários de «curricula vitarum» chegam ao ponto de citar a seguinte frase de Marcus Tullius Cicero: «Solem enim e mundo tollere videntur, qui amicitiam e vita tollunt» (Amic. 47).
Nesta frase, que podemos traduzir por «Os que privam a vida da amizade, é como se privassem a Terra do Sol», é verdade que, na segunda oração, a um pronome e verbo plurais (qui tollunt) corresponde um substantivo (vita) singular. O que esquecem tais contendores é que, neste caso, o escritor não fala da vida dos que a privam da amizade, mas do conceito de vida em geral, o que justifica o singular. No entanto, não é necessário recorrer a esta frase fora do contexto, pois existem abonações directas que corroboram o plural «curricula vitae», como veremos já de seguida.
Marcus Tullius Cicero (Acad. 1, 44, 7-8), referindo-se a Sócrates e a alguns filósofos anteriores, entre os quais Demócrito, saiu-se com esta: «qui [...] angustos sensus, imbecillos animos, brevia curricula vitae [...] esse dixerunt» (= «os quais disseram que os sentidos são limitados, a vontade é fraca e a vida é curta»). O plural animos justifica-se pelo fa(c)to de a asserção se referir à humanidade em geral, e daí o plural curricula, o qual, no entanto, não implicou a pluralização de vitae.
A seguinte abonação, de Marcus Cornelius Fronto (Ep. 2, 7, 19, 14), também é interessante: «iuventuti prolixa vitae curricula data sunt» (= «à juventude foi concedido um longo tempo de vida»). Uma vez mais, perante um termo colectivo (iuventuti), o escritor sente a necessidade de pluralizar curricula, mas não vitae.
Não encontrei qualquer abonação, nem clássica nem pós-clássica, para o duplo plural «curricula vitarum». Entendo, por isso mesmo, que têm razão os defensores do plural simples «curricula vitae», e que deve ser esta a forma preferida.
Não quer isto dizer que «curricula vitarum» seja uma forma disparatada, nem que a pluralização de vitae implicasse que cada CV trataria de várias vidas. Este argumento, frequentemente aduzido pelos detra(c)tores do plural duplo, parece-me perfeitamente descabido. Basta analisarmos o comportamento do vocábulo vita noutras expressões e daí tirarmos as nossas ilações. Começo por citar a seguinte frase do grande São Tomás de Aquino (Quod. 2, q. 1 a. 2 arg. 2): «vita Christi, quae valet omnium hominum vitas» (= «a vida de Cristo, que vale tanto como as vidas de todos os seres humanos»). De acordo com os detractores de «curricula vitarum», São Tomás de Aquino estaria aqui a insinuar que cada ser humano tem várias vidas... Doutrina perigosa para um doutor da Igreja, impedido de professar a reencarnação...
Poderá ainda argumentar-se: bom, provavelmente tal plural é propositado e deve-se ao facto de São Tomás de Aquino pretender realçar a dimensão da vida de Cristo... Se assim fosse, como explicar a expressão «hominum vitas» ou «vitas hominum» (= «as vidas dos seres humanos») que encontramos amiúde em autores latinos clássicos e pós-clássicos: Marcus Tullius Cicero (Inv. 1, 5), Titus Lucrecius Carus (Rer. 5), Lucus Marcus Manilius (Astr. 3, 58), Lucius Decimus Ausonius (Op. 12, 2), Erasmus (Mor. 48)? Seriam todos eles apóstolos da metempsicose e da reencarnação? Muito pouco provável...
Como explicar também a seguinte frase de Lucius Publius Terentius (Adel. 3, 1, 415): «inspicere, tamquam in speculum, in vitas omnium» (= «observar, tal como num espelho, as vidas de toda a gente»)?
Tudo indica que, nas mentes que se expressavam em lídimo latim, a pluralização do vocábulo vita, nos casos em que este se referia a vários sujeitos, não implicava que cada um deles possuísse várias vidas...
Com outros vocábulos, verificava-se uma pluralização semelhante, também ela sem as nefastas consequências pretendidas pelos detractores de «curricula vitarum». Recordo aqui o célebre verso de Virgílio (Aen. 2, 1): «Conticuere omnes intentique ora tenebant.» Uma tradução aceitável seria: «Calaram-se todos e prestaram a maior atenção.» No entanto, tal tradução não permite realçar o que permitiria uma tradução literal da segunda oração: «mantinham os rostos atentos». Ou seja, uma vez mais, a um plural (omnes: «todos») corresponde outro plural (ora: «rostos»), sem que daí resulte a bizarria de cada uma das pessoas presentes ter vários rostos...
Resumindo e concluindo, apesar de o duplo plural («curricula vitarum») não atentar o espírito latino nem poder ser taxado de despautério, deve preferir-se o plural simples («curricula vitae»), por falta de abonação do primeiro.