DÚVIDAS

«Se faz favor também se cá gasta...»

Confesso que, depois de fazer umas consultas neste portal, fiquei sem palavras para o elogiar. Elas já foram todas ditas. Por isso, passo ao assunto.

Quando eu era criança e os meus pais me iam incutindo os princípios básicos dos valores sociais, era costume corrigirem, quando eu fazia um pedido: «Se faz favor também se cá gasta.»

Decorridos todos estes anos — que são bastantes — e sem saber porquê, esta frase voltou-me à lembrança e, com ela, a pergunta: a construção estará correcta? Admito que a frase, assim dita, tenha um "aspecto" cacofónico e algo escatológico. Julgo que o correcto seria «... se gasta cá» ou «... cá se gasta». Mas será que a frase foi propositadamente alterada para que o tal "aspecto" escatológico servisse como reforço da memória (nós temos mais tendência para memorizar o obsceno)?

Resposta

A versão que conheço é «se faz favor também cá se gasta». É verdade, porém, que a versão referida pelo consulente é possível, porque reproduz um tipo de colocação do pronome átono (neste caso, se) em estruturas de negação que se encontra em muitos escritores tanto do século XIX como do século XX. O que acontece é que até hoje, pelo menos na língua escrita, é possível intercalar o advérbio de negação entre o pronome clítico e o verbo, desde que estes três elementos ocorram numa oração subordinada ou depois de qualquer outra palavra que determine a próclise do pronome. Celso Cunha e Lindley Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo, pág. 314) referem-se assim a este uso:

«Costumam os escritores do idioma, principalmente os portugueses, inserir uma ou mais palavras entre o pronome átono em próclise e o verbo, sendo mais comum a intercalação da negativa não:

"Era impossível que lhe não deixasse uma lembrança" (Machado de Assis, Obra Completa, I, 563).
"Conformado pelas suas palavras, o tio calara-se, só para não dar assentimento. (Alves Redol, Fanga, 310).
"Há tanto tempo que o não via!" (Luandino Vieira, A Cidade e a Infância, 64).»

Concluo, portanto, que o advérbio , à semelhança da negação, também se possa inserir entre o pronome e o verbo. Em todo o caso, trata-se de uma construção arcaica ou literária.

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