Mudam-se os tempos, muda-se o sentido das palavras.
Dicionários recentes, como os da Texto e da Porto Editora, indicam em pedofilia a «atracção sexual mórbida do adulto pelas crianças». Mas Cândido de Figueiredo, no princípio do século, ao elaborar o «Novo Dicionário da Língua Portuguesa», definia pedófilo como o adulto «que gosta de crianças» - talvez porque só conhecesse o sentido determinado pela etimologia: o grego paîs, paidós (criança)+philos (amigo).
O dicionarista não podia ver nos jornais da época, nem ouvir aos indivíduos da convivência dele, nem descobrir em relatórios das autoridades, a informação que se omitia (mesmo depois de 1974) sobre os abusos (sexuais ou não) exercidos em menores. Não se tratava apenas da censura à imprensa mas da censura exercida pelos costumes vigentes. O que se não noticiava nem era motivo de queixa - não podia existir.
Compreende-se, assim, a perplexidade do nosso consulente, perante um dicionário que ignora os horrores pedófilos ora descobertos na Bélgica. Mas as surpresas não se verificam só com esta palavra. É muito interessante uma viagem pelos dicionários e enciclopédias de várias épocas.
Veja-se, por exemplo, pederastia. Cândido de Figueiredo define-a «como vício contra a natureza» (a homossexualidade segundo o preconceito recém-banido, creio, dos dicionários) ou «amor repugnante de um homem a um rapaz».
Receio que o nosso mestre lesse os clássicos apenas com os olhos da filologia, esquecendo o remanescente não conforme com a moral da época dele, mas conforme com a moral dos tempos de Sófocles, Fídias, Sócrates, Platão e muitos outros, quando a pederastia era prática instituída (Creta e Esparta) ou tacitamente aceita (Atenas) nos ritos cívicos de passagem da juventude e envolvia «casais» formados por um «educador» (o adulto) e um «educando» (rapaz - paides ou paidika - dos 12 aos 18 anos). O jovem «bem educado», ao tornar-se adulto, tinha de abandonar a prática «passiva», sob pena de algum ilustre Aristófanes o escarnecer: não pelo «vício contra a natureza» mas, tão-só, pela «passividade».
Leia-se «Amor e Sexualidade no Ocidente», de vários autores, com prefácio de Georges Duby (Terramar, Lisboa, 1992). Se conhecesse esta ou alguma das obras citadas na bibliografia, uma jovem licenciada, respondendo há anos ao inquérito informal com que o conselho directivo de uma escola pretendia animar as reuniões de pais, nunca teria indicado, como vulto da História que gostaria fosse professor do filho, o grande Sócrates.
N.E. O autor escreve segundo a Norma de 1945.