«Aos homens deu Deus uso da razão, e não aos peixes; mas neste caso os homens tinham a razão sem o uso, e os peixes, o uso sem a razão» é o enunciado com que o padre António Vieira termina o 4.º parágrafo do capítulo II do Sermão de Santo António aos Peixes, frase essa que contém o juízo crítico do autor sobre a situação ou o caso que, intencionalmente, apresentou ao longo desse parágrafo, que conduziria a tal conclusão.
Nesse parágrafo, em que fala sobre a obediência, como a primeira das virtudes dos peixes («é aquela obediência com que, chamados, acudistes todos pela honra de vosso Criador e Senhor», destaca a sua atitude perante o discurso/sermão de Santo António, elogiando o respeito que manifestam pelo santo através da «ordem, quietação e atenção com que ouvistes a palavra de Deus da boca do seu servo António» e a admiração que demonstram quando «em inumerável concurso acudindo a sua voz, atentos e suapensos às suas palvras, escutando com silêncio e com sinais de admiração e assenso (como se tiveram entendimento) o que não entendiam».
Ora, tais louvores dirigidos aos peixes têm o objectivo de evidenciar o contraste do comportamento dos homens face às pregações de Santo António. Em clara dissonância com a obediência, o respeito e a admiração, as virtudes atribuídas aos peixes — causa de «afronta e confusão para os homens!» —, os homens são caracterizados pelo desrespeito, pelo ódio, pela insensatez e pela obstinação no mal, pois reagem/respondem aos conselhos e repreensões do santo, perseguindo-o, expulsando-o das suas terras, desejando-lhe a morte («Os homens perseguindo a António, querendo-o lançar da terra e ainda do Mundo, se pudessem, porque lhes repreendia seus vícios, porque lhes não queria falar à vontade e condescender nos seus erros»). A fúria e a obstinação, sinais de irracionalidade, ressaltam no seu comportamento, razão pela qual o autor os compara a «feras», enquanto aos peixes atribui o estatuto de «homens» — «Poderia cuidar que os peixes irracionais se tinham convertido em homens, e os homens não em peixes, mas em feras.»
A partir daqui, chega-se ao sentido do enunciado com que termina o parágrafo. Se Deus deu aos homens a racionalidade, a faculdade do raciocínio (da razão), é incompreensível que estes tenham atitudes irracionais, insensatas, ou seja, que não usem a razão. Pelo contrário, quem evidencia atitudes lógicas, racionais, são os peixes, que, naturalmente, são irracionais.
Com o jogo de palavras e de construções, os trocadilhos, o padre António Vieira coloca-nos perante um caso que pode parecer paradoxal, ilógico, mas a carga irónica que atravessa este excerto denuncia uma realidade ilógica vivida pelo autor — a irracionalidade humana perante o apelo para o bom senso e para a dignidade.