A consulente começa por afirmar que a conhecida sentença «Quem tem boca vai a Roma» está incorrecta e que a frase correcta seria «Quem tem boca vaia Roma». Depois, pede a explicação da última frase.
A minha resposta vai, assim, conter um comentário sobre a eventual “correcção” das frases e a respectiva explicação.
Quanto à “correcção”, é óbvio que ambas as frases estão correctas. Agora, qual é a frase original? Os dados que tenho apontam no sentido de a frase original ser «Quem tem boca vai a Roma».
Desconheço em que é que a consulente se fundamenta para dizer que é a outra.
Considero que a primeira frase deverá ser a original por cinco motivos, que passo a enunciar.
1. É assim que ela está registada em obras de referência como, por exemplo, o Dicionário de Máximas, Adágios e Provérbios, de Jayme Rebelo Hespanha (1936), a Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (1948), o Grande Dicionário da Língua Portuguesa de António de Morais Silva (1949 a 1959), o Livro dos Provérbios Portugueses, da Editorial Presença (1999), o Dicionário de Provérbios, Adágios, Ditados, Máximas, Aforismos e Frases Feitas, da Porto Editora (2000).
2. Este provérbio tem variantes, o que demonstra a vitalidade da ideia aí defendida: «Quem tem língua vai a Roma»; «Quem língua tem a Roma vai e de Roma vem»; «Quem tem língua a Roma vai e vem».
3. Roma entrou no adagiário por causa da sua importância, do seu valor, do seu mérito, e não por aspectos negativos: «Roma locuta est» (= «Roma falou»: se Roma falou, o que ela disse deve ser seguido pelos católicos); «Roma locuta, causa finita» (= «Roma falou, a causa acabou»); «Roma e Pavia não se fizeram num dia»; «Em Roma, sê romano»; «Todos os caminhos vão dar a Roma», «O que vai aqui não vai em Roma».
4. A frase «Quem tem boca vai a Roma» traduz a notoriedade da Cidade Eterna, mas também a verdade de que quem sabe perguntar consegue chegar seja onde for (literal e figuradamente), consegue obter os conhecimentos de que precisa para se orientar. As palavras-chave aqui são três: boca, vai e Roma. A boca significa a capacidade de falar, de perguntar, de comunicar; o verbo ir tem que ver com o percurso, a caminhada, significando passar de um lugar a outro, deslocar-se, mas também evoluir, progredir; Roma fora, aquando do Império Romano, a capital, a cidade mais importante do mundo conhecido dos europeus, mas uma cidade que ficava longe, sob o ponto de vista dos mais remotos territórios que constituíam o vasto império, e, por outro lado, esta é a cidade cabeça da Igreja Católica, traduz a própria Igreja, o seu governo, o papado, significando para os católicos o que de melhor existe e que se procura alcançar. Chegar a Roma poderá ser difícil, mas quem tem a capacidade de falar ultrapassará os obstáculos e alcançará o que pretende: conseguirá chegar longe, até conseguirá chegar a Roma.
5. Há mais de cinco décadas que oiço a frase «Quem tem boca vai a Roma» a propósito de diversas situações do dia-a-dia, mas nunca ouvi a frase «Quem tem boca vaia Roma», que, aliás, não tem qualquer valor como máxima, como sentença para orientação da vida das pessoas, que é o que acontece com a generalidade dos provérbios.
Quanto à explicação da segunda frase, são também três as palavras-chave: boca, vaia e Roma. De boca e de Roma já se falou; quanto a vaiar, significa apupar, insultar, manifestar desaprovação ou desagrado por meio de assobios ou de insultos. Esta frase quereria então dizer que quem sabe falar insulta o poder, ou seja, que o indivíduo que domina a palavra, porque a domina, insulta o símbolo do poder ou da Igreja. Ora, uma frase destas não corresponde ao que é consensualmente aceite na tradição popular portuguesa.