DÚVIDAS

O porquê das consoantes dobradas na antiga ortografia

Sempre tive imensa curiosidade em saber ao certo o porquê das letras consoantes dobradas na antiga ortografia da língua portuguesa, mas nunca obtive uma explicação completa. Parece-me que se trata de uma herança que recebemos do latim, o qual, por sua vez, teria recebido tal uso da língua grega, sendo, aliás, esta prática possivelmente uma invenção dos gregos.

Percebo que, muito freqüentemente, nas palavras do nosso idioma na grafia antiga, as consoantes dobradas vinham imediatamente após a sílaba tônica, talvez para indicar a tonicidade da mesma. Se é verdade, então nesse caso os caracteres repetidos faziam as vezes dos acentos gráficos. Observo que as letras mais repetidas eram "l", "n" e "t", mas também "b", "c", "f", "m", "p", etc. No Brasil, ainda hoje, muitos apelidos portugueses conservam a grafia antiga, sendo escritos Mello, Senna, Mattos, etc. Já as palavras comuns ajustaram-se todas à nova ortografia.

Casos existiam, no entanto, em que o caractere repetido antecedia a sílaba tônica da palavra ou fazia parte dela (Affonseca, commercio).

Esclareço que o caso acima mencionado não é o dos dígrafos (rr, ss) nem daqueles em que a letra dobrada é efetivamente pronunciada duas vezes, pois representa dois fonemas iguais repetidos (faccioso, ficcional, friccionar, etc.), mas sim daqueles casos em que a letra dobrada se lê apenas uma vez. Por exemplo, naqueles tempos, escrevia-se "sacco", mas lia-se "saco", sendo, portanto, o "c" pronunciado uma só vez, embora estivesse escrito duas.

Vós, cultos e preparados consultores do Ciberdúvidas, poderíeis dar-me uma orientação segura sobre este assunto aqui ventilado?

Muito obrigado.

Resposta

O que o consulente diz no primeiro parágrafo requer alguns comentários:

1. Uma consoante dobrada (dupla, geminada, longa) é uma consoante dupla; este tipo de consoante existe, por exemplo, numa língua bem próxima do português, o italiano, conhecida pelas suas doppie (ou seja, consoantes duplas) bem articuladas: notte («noite»), cammino («caminho», não confundir com camino, «chaminé»; cf. Teyssier 2004: 45).

Em latim pronunciavam-se consoantes geminadas, que tinham representação gráfica: p. ex., sĭccum, «seco». Na lenta evolução do latim vulgar ao galego e ao português medievais, tais consoantes duplas tornaram-se sons simples: sĭccum > seco; mĭttit > mete (meter), gallina > galinha; pannum > pano (ver Williams 2001: 84-86).  

2. As consoantes duplas do latim não são geralmente uma herança grega, porque o grego clássico não as tinha verdadeiramente. As duplas do latim são antes um resultado específico da evolução do proto-itálico, pertencente, como o grego, à família de línguas indo-europeias.

3. As consoantes duplas do latim simplificaram-se na evolução para o português. Se os documentos medievais galegos e portugueses apresentam consoantes duplas, tal se deve principalmente ao peso da tradição gráfica latina. Esta influência, muitas vezes exercida por intermédio da Igreja, foi mais tarde reforçada por uma tendência claramente manifesta em finais do século XVI: a de, em contraste com a orientação mais fonética da ortografia castelhana, assinalar a história das palavras portuguesas pela sua aparência gráfica, de modo a salientar a menor "corrupção" do português em relação ao latim (cf. Marquilhas 1987: 110/113). Fala-se por isso da fase etimológica da ortografia portuguesa, que, aproximadamente, se prolongou em Portugal e no Brasil até à primeira década do século XX (sobre  cronologia das reformas ortográficas da língua portuguesa, consultar o Portal da Língua Portuguesa).

Em relação às restantes observações e dúvidas, resta-me acrescentar os seguintes pontos:

4. É possível as letras dobradas terem constituído um recurso gráfico indicativo da tonicidade de sílabas precedentes, mas falta-me a confirmação de estudos sistemáticos. De qualquer modo, as letras dobradas foram, como já disse no ponto anterior, um artifício gráfico, muitas vezes com a função de dar ou reforçar prestígio e foros de nobreza a grupos e indivíduos.

5. Confirmo as observações do consulente em relação aos dígrafos rr e ss: não representam consoantes duplas, mas sim consoantes simples, respectivamente, os sons [R] e [s].

6. Ao contrário do que o consulente afirma, as letras dobradas em faccioso, ficcional, friccionar não se pronunciam como «dois fonemas iguais repetidos». Na realidade, o par -cc- é pronunciado como uma sequência de duas consoantes distintas, [ks], nas palavras em apreço.

Referências:

Williams, E. B. 2001. Do Latim ao Português [1.ª edição da tradução para português em 1961], Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro
Marquilhas, R. 1987. "O acento, o hífen e as consoantes mudas nas ortografias antigas portuguesas", in Castro, I., Duarte, I, e Leiria, I. (orgs.), A Demanda da Ortografia Portuguesa, Lisboa, Edições João Sá da Costa
Teyssier, P. 2004. Comprendre les Langues Romanes, Paris, Editions Chandeigne

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