Está em discussão saber se «Eu parece-me...» é uma construção incorrecta, como referi em resposta anterior (de 25/9/2001), ou se é correcto o seu emprego, considerando-se um anacoluto utilizado para dar relevo à entidade a que o sujeito se refere (neste caso, «Eu»).
Trata-se, efectivamente, de uma construção anacolútica. O anacoluto é uma construção gramatical em que há falta de concordância entre relativo e antecedente, aposto e nome ou sujeito e predicado, que se ligam apenas pelo sentido evidente da frase, e não pelas regras da sintaxe. Uma ou mais palavras do início de uma oração não se ligam sintacticamente ao que vem depois, havendo uma falta de rigorosa concordância, regência ou ligação entre os elementos da oração. No anacoluto interrompe-se o membro inicial de um período, introduzindo-se uma outra sequência de discurso e retomando-se de seguida a referência a esse elemento inicial, mas sem concordância sintáctica.
Este processo pode ser utilizado com intenções estilísticas e tornar-se um recurso que valoriza o tal termo inicial que não estabelece concordância sintáctica com o resto da oração, como acontece nos exemplos de anacolutos que transcrevo de seguida, nos quais está sublinhado o termo “abandonado” e o retomar da ideia que com ele se relaciona (sem concordância sintáctica):
1. «Este povo que é meu, por quem derramo/ as lágrimas que em vão caídas vejo,/ (...)por ele a ti rogando, choro e bramo» (Camões, Os Lusíadas, II, 40).
2. «Vereis este, que agora, pressuroso,/ por tantos medos o Indo vai buscando,/ tremer dele Neptuno de medroso,/ sem vento suas águas encrespando» (Camões, Os Lusíadas, II, 47).
3. «Eu, que cair não pude neste engano/ (que é grande dos amantes a cegueira),/ encheram-me com grandes abondanças/ o peito de desejos e esperanças.» (Camões, V, 54).
No entanto, em geral, o anacoluto é considerado um vício de linguagem. Resulta esse vício do facto de a linguagem não acompanhar um pensamento em que as ideias surgem rapidamente. Começa-se a dizer alguma coisa sem se calcular bem que rumo vai levar a frase para terminar o que se quer dizer, a determinado momento não se encontra bem a ligação com o que já está dito, faz-se uma ligeira pausa e procura-se saída numa construção em que desaparece a concordância sintáctica com o início da frase.
Considero que a expressão «Eu parece-me que» é um desses exemplos de anacolutos a evitar por quem queira falar e escrever correctamente a língua, pois o termo inicial «eu» não está valorizado com uma expressão que de seguida se lhe refira (como nos exemplos acima) e que permita depois a quebra da concordância sintáctica (dada a distanciação entre os dois termos da oração), sendo, pois, essa ligação imediata de um sujeito na primeira pessoa («eu») com um verbo na terceira pessoa («parece») sentida como incorrecta, não parecendo visível a intencionalidade estilística do falante.