DÚVIDAS

Discurso oral: pronomes antes do verbo

Sabemos que, em posição pós-verbal, o pronome não pode ser separado do verbo: (1) A Maria viu-o. *A Maria viu-ainda-o Contudo, em posição pré-verbal, a proibição não é absoluta, embora as circunstâncias sejam restritas. A pergunta que venho colocar refere-se às partículas que podem efectivamente ocorrer entre o verbo e o pronome, no discurso falado. Nos exemplos em (2), apresento algumas estruturas enfáticas e gostaria de saber se, com a entoação adequada, seria possível alterar a ordem comum das palavras e colocar algumas expressões entre o pronome e o verbo: (2) a. Eu acho que tu ainda me não disseste a verdade! b. Eu acho que tu me ainda não disseste a verdade! (3) a. Quantas vezes te eu disse para não fazeres isso? b. Quantas vezes te eu já disse para não fazeres isso? (4) a. Isso já eu lhe ontem disse! b. Isso já lhe eu ontem disse! (5) a. Eu já lhe realmente tentei explicar isso, mas ele é que não quis ouvir. b. Olha que já me realmente perguntaram isso uma vez! (6) a. Alguém me ainda ontem disse que os médicos iam fazer greve. b. Alguém ainda me ontem disse que os médicos iam fazer greve.

Obrigada, uma vez mais, pelo esclarecimento.

Resposta

No discurso oral, na interacção verbal, a ênfase é muitas vezes dada pela deslocação das palavras no interior da frase. A mudança de determinado elemento na frase em relação à posição esperada vai evidenciá-lo, realçá-lo. Na resposta, vou utilizar a sua numeração: (2) a. – Poderá utilizar-se esta construção. O facto de o falante colocar o pronome "me" antes do advérbio de negação é revelador da importância que aquele dá ao que está a sentir, ao efeito que acção tem sobre si. (2) b. – Não será aceitável esta construção. Já está dado realce ao pronome pessoal com a anteposição em relação ao advérbio de negação. Ele não deverá antepor-se a dois advérbios. Antepor-se a um já é desvio suficiente em relação à posição esperada. O advérbio de tempo "ainda" ou fica onde está (ainda me não, ainda não me) ou é colocado imediatamente após a forma verbal (tu não me disseste ainda, acho que tu me não disseste ainda). A anteposição em relação ao verbo salienta essa circunstância temporal. (3) a. e b. – Poderá utilizar-se a construção (3)a.. A colocação do pronome que tem a função de complemento indirecto (te) antes do sujeito (eu) vai evidenciar a responsabilidade dessa 2.ª pessoa. Na frase (3)b., seria aceitável introduzir o advérbio "já" antes do verbo, construção normal das frases com este advérbio (eu já disse). No entanto, a construção com anteposição simultânea do advérbio e do pronome, pretendo realçar dois elementos diferentes (o pronome e a circunstância temporal) não é usual. Considero ser de realçar apenas um dos elementos. (4) a. e b. – Na escrita, utilizamos "Eu ontem disse-lhe." e "Isso já eu ontem lhe disse.". O advérbio "ontem" tem, pois, uma colocação normal antes do verbo, e o pronome "lhe" deve ficar em posição proclítica quando a frase se inicia por um sintagma que não o sujeito, como é o caso do meu segundo exemplo. A posição ainda mais anterior deste pronome pode aceitar-se, antecedendo o sujeito na frase b. e poderia aceitar-se antecedendo a própria circunstância temporal na frase a., constituindo formas de realçar a responsabilidade dessa 3.ª pessoa (mais importante que o sujeito, mais importante que a circunstância temporal). No entanto, eufonicamente, a frase (4) a. não é agradável. (5) a. e b. – Não é aceitável nenhuma das construções, por causa do valor do advérbio "realmente", ele também com função expletiva. Esse "realmente" deverá situar-se antes da situação que ele evidencia, assim: "Realmente, eu já lhe tentei explicar..."; "Eu, realmente, já lhe tentei explicar isso..." "Realmente, olha que já me perguntaram isso uma vez." "Olha que, realmente, já me perguntaram isso uma vez." (6) a. e b. – "Ontem" pode ser colocado antes do verbo (ex.: ontem. alguém me disse que...). O advérbio "ainda", porque reforça o advérbio "ontem", deverá ser-lhe anteposto (ex.: ainda ontem alguém me disse que...; alguém ainda ontem me disse que...), não se introduzindo nada a separá-los. A colocação proclítica do pronome "me" decorre da utilização do pronome indefinido (alguém) como sujeito. A colocação ainda mais anterior desse pronome não é aceitável em conjugação com os advérbios ainda e ontem, conforme refiro a propósito de (2)b., (3)b. e (4)a. Assim, não será de aceitar nenhuma destas construções. A concluir, direi que a gramática do português falado está em permanente construção, dado o carácter dinâmico desta forma de realização da língua.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa