DÚVIDAS

«Deve manter-se o sigilo»

Participei de um concurso público para provimento de vagas a um dos cargos oferecidos pela Prefeitura local. Logicamente, a Língua Portuguesa foi uma das matérias de avaliação. Hoje, pela manhã, saiu o gabarito das provas e, ao conferir a minha prova, uma questão me suscitou dúvida, pois não concordei com a resposta apresentada pelo promotor das provas do concurso. De acordo com a resposta que os senhores me apresentarem, entrarei com um recurso junto ao instituto para que seja revista a resposta da questão.
Baseados em uma parte de um texto apresentado na prova, foi-nos dada a seguinte afirmativa: "Preservam-se a construção passiva e a correção gramatical ao se substituir 'O sigilo deve ser mantido' por 'Deve-se manter o sigilo'."
Eu respondi que estava errado, pois entendo que o correto deveria ser 'Deve manter-se o sigilo', pois eu entendo que a partícula 'se' deve ser atraída pelo verbo no infinitivo. Além disso, quem está na voz passiva é o verbo 'manter' e não o verbo 'dever'.
Infelizmente, o gabarito disse que a afirmativa estava correta, por isso perdi o ponto nessa questão.
Os senhores acham que eu devo recorrer? Meu pensamento está correto?
Conto com sua compreensão.

Resposta

Caro consulente, há gramáticos que consideram que numa oração absoluta, independente (como é o caso em apreço), a partícula ou o pronome se tanto podem ligar-se ao infinitivo como ao verbo de que o infinitivo depende. No Dicionário de Questões Vernáculas, de Napoleão Mendes de Almeida (1981), por exemplo, surge o registo «Devem-se transformar as leis.» e explica-se que «quando apassivante, o se pode ficar entre o infinitivo e o verbo de que o infinitivo depende: ‘Deve-se repartir a herança’ – ‘Promete-se acabar com as injustiças’ – ‘Pode-se ver o que fez ele’ – “Peixes podem-se pescar...’».
Um conceituado autor português, Vasco Botelho do Amaral, no seu Novo Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa (1943) regista «devem-se comprar esses livros» e refere o seguinte: «Lembremos que é indiferente escrever ‘as cidades podem-se tomar’, ‘a fortuna parecia dever-se inclinar’ ou ‘podem tornar-se’, ‘dever inclinar-se’, etc. Cf. a pág. 152 da Gramática Portuguesa Elementar de Epifânio Dias.»
Na Moderna Gramática Portuguesa de Evanildo Bechara (1999), admite-se a ligação do pronome não só ao auxiliar como ao verbo principal, considerando-se, no entanto (e cita-se o Prof. Martinez de Aguiar), que, por um factor lógico se liga o pronome ao infinitivo, e não ao verbo auxiliar.
Há mesmo autores que consideram que, numa locução verbal em que o verbo principal está no infinitivo, deve ocorrer sempre a ênclise ao infinitivo, ou seja, o pronome deve colocar-se após o infinitivo e a ele ligado. Tal é a posição de Celso Cunha e Lindley Cintra, na sua Nova Gramática do Português Contemporâneo (1997).
Do exposto, caro consulente, decorre que, em princípio, tanto se pode defender a correcção de «Deve manter-se o sigilo.» como de «Deve-se manter o sigilo.»
No entanto, não é essa a minha posição. Considero que, em substituição de «O sigilo deve ser mantido.», só é correcta a frase «Deve manter-se o sigilo.» A partícula apassivante deve ligar-se ao verbo manter. Por alguns motivos, assim o defendo:
1.º – Os pronomes clíticos devem estar junto do verbo ao qual dizem respeito (critério lógico).
2.º – A partícula apassivante é originariamente um pronome reflexivo que indica a passividade do sujeito, devendo comportar-se, a nível da colocação, como os outros pronomes.
3.º – Em locuções verbais em que o verbo principal está no infinitivo, é a este que os respectivos pronomes se devem ligar.
4.º – O verbo que está na passiva é o verbo “manter”, e não o verbo “dever”. Trata-se de “ser mantido”, e não “ser devido”. Se a frase inicial fosse «É devido manter o sigilo.», então a sua correspondente poderia ser «Deve-se manter o sigilo.»
5.º – Lembro-me de uma frase vulgarmente utilizada em erratas de livros: «Onde se lê (...) deve ler-se (...)», e não “deve-se ler”.

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