Na linguagem comum e em alguns dicionários, «cínico» é, creio, uma injustiça para o filósofo grego Antístenes: impudente, descarado, desavergonhado, hipócrita; pessimista («o mundo pula e avança»... para o abismo).
Cândido de Figueiredo, no «Novo Dicionário da Língua Portuguesa» (Bertrand, Lisboa, 1939), atribui também ao «cínico» o sentido de «canino» (considerando-o em desuso), mas não lhe explica a origem: menciona apenas o étimo latino («cynicus»).
O «Dicionário da Língua Portuguesa» da Porto Editora (6ª edição) vai até ao étimo grego, «kinikós» (relativo ao cão), e faz alguma justiça aos primeiros filósofos cínicos. Ou seja: remete o impudente e a impudência para sentido figurado, definindo «cínico» do seguinte modo: «...Pertencente à seita filosófica da Grécia Antiga que encarava a felicidade como decorrente da virtude, único bem, com total desprezo dos demais valores, convenções e opiniões, geralmente aceites» (realce, a fino, da minha responsabilidade).
Afigura-se-me que o dicionário da Porto Editora - não obstante o termo «seita», em vez de «escola» - revela maior rigor do que outras obras de divulgação, incluindo o «Vocabulário de Filosofia», de Armand Cuvillier (Livros Horizonte, Lisboa, sem data). Mas não deixa de confundir, nesta síntese, as «fases» de Antístenes e Diógenes (que me permiti distinguir, ao colocar a negro a concepção que atribuo àquele e a fino a que atribuo a este).
Fundada em Atenas cerca de 400 a.C., a Escola Cínica teve como animador Antístenes - amigo e discípulo de Sócrates, que, segundo algumas opiniões, teria sido não apenas precursor do «cinismo» mas, mesmo, o primeiro filósofo «cínico». Antístenes interessou-se sobretudo pelo lado prático da moral, entendendo a virtude como o único fundamento da felicidade - à qual só se poderia chegar quando cada um se libertasse das necessidades e dos desejos.
«Cínico» e «Cinismo» parecem dever a origem ao local onde estes filósofos se reuniam: o ginásio de Cinosarges (em grego, Kinosarges), fora das muralhas de Atenas.
Outra hipótese etimológica é a palavra grega «kýon» (cão), alcunha dada a Diógenes de Sinope, que - como um cão - vivia num tonel de barro. Em época posterior a Antístenes, Diógenes foi o principal representante da Escola Cínica, com uma doutrina marcada pelo exagero e pela sátira, no maior desprezo pelo conhecimento, as artes e a moral vigentes.
Apesar das anedotas que correram sobre Diógenes; apesar de ele, nesses relatos, ser dado como não se privando de fazer quanto lhe apetecia em público, imagine-se que, segundo Cândido de Figueiredo (obra citada), os brasileiros também vêem no «cínico» uma pessoa enfadonha, aborrecida (talvez Antístenes o fosse), e até têm neste sentido o verbo «cinicar», assim utilizado por Castro Alves (em «Espumas Flutuantes»): «...Diz-me o relógio cinicando a um canto...».
Desculpe-me, caro consulente - se tão longa resposta o «cinicou».