O diminutivo de ‘cæcus’ («cego») é ‘cæcŭlus’. No feminino, o diminutivo de ‘cæca’ («cega») é ‘cæcŭla’. Estes diminutivos, relativamente frequentes em latim científico (por exemplo, ‘Cæcula pterygera’ é um peixe anguiliforme, enquanto ‘Cæculus crossleyi’ designa um ácaro), estão pouco abonados por autores clássicos. Não consegui encontrar nenhuma referência fidedigna para ‘cæcŭlus’. Embora este vocábulo figure nalguns dicionários, que o reportam a Plauto (c. 254-184 a. C) aduzindo um remoque de Pégnio a Sagaristio na comédia Persa («Tua quidem, cæcŭle, causa!» [II, 4, 282] = Por tua culpa, cegueta!), a verdade é que a maior parte dos editores, neste passo, lê ‘cucūle’ («adúltero») em vez de ‘cæcŭle’, o que até faz mais sentido no diálogo em causa… Quanto a ‘cæcŭla’, a única referência que consegui encontrar encontra-se nas célebres etimologias de Isidoro de Sevilha (c. 560-636), num trecho em que o douto bispo se refere a determinada serpente: «Salpuga serpens est quae non videtur. Cæcula dicta, propter quod parva sit et non habeat oculos.» [Or. XII.4.33 ] (= A ‘salpuga’ é uma serpente que não vê. Chama-se ‘cæcula’ por ser pequena e não ter olhos). Ou seja, é “ceguinha” por ser cega e pequenina… É uma nota interessante, apesar da cautela que devem merecer as etimologias de Isidoro, nas quais a fantasia anda de mãos dadas com a realidade... Se há poucas ou nenhumas abonações de ‘cæcŭlus’ como substantivo comum, o mesmo não se poderá dizer do antropónimo ‘Cæcŭlus’. É célebre a referência que, na Eneida (VII, 678-681), Virgílio faz a Céculo, mítico fundador de Preneste (hoje, Palestrina, em Itália), mas mais interessante para este artigo é o comentário que a este passo aduz o gramático Maurus Servius Honoratus (séc. IV) na obra Servii Grammatici in Vergilii Æneidos librum septimum commentarius (678): «Cæculus autem ideo, quia oculis minoribus fuit» (= Chamava-se ‘Cæculus’ por ter olhos pequenitos). Ou seja, não por ser cego, ceguinho ou cegueta… A relação etimológica entre ‘Cæcŭlus’ e ‘cæcus’ também não oferece qualquer dúvida ao nosso conceituado lexicógrafo José Pedro Machado: «Céculo, m. Do lat. ‘Cæculu-‘ (dimin. de ‘cæcus’, “cego”, “de olhos pequenos”), filho de Vulcano, fundador de Preneste.» (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 1984). No entanto, Meillet não a refere no seu prestigiado Dictionnaire Étymologique de la Langue Latine (1959). Sem querer deitar mais achas para a fogueira, permitam-me referir que encontrei os vocábulos ‘koikýllô’ («arregalar os olhos por motivo de espanto») e ‘koikylíôn’ («o que arregala os olhos por motivo de espanto») no Dictionnaire Grec-Français de Anatole Bailly (4. ª ed. 2000)… Voltando à pergunta do consulente: para dizer «ceguinha» em latim, é necessário recorrer a um adjectivo que qualifique adequadamente o substantivo ‘cæca’, adjectivo esse que poderá ser ‘misĕra’, ‘misella’, ‘infēlix’, ‘miserabĭlis’, ‘miseranda’, etc. (dada a comiseração que, neste caso particular, está subjacente ao diminutivo) ou ‘mendĭcans’ (por o termo ser muitas vezes associado à mendicidade). Por exemplo: «Ontem vi uma ceguinha no metro» poderia ser, em latim, ‘Heri subterraneo in tramine mendicantem vidi cæcam’. Para concluir esta latinada, é bom referir que a língua de Cícero também tinha forma de criar eufemismos para evitar a carga negativa necessariamente associada ao vocábulo ‘cæcus’, o qual, aliás, tinha em latim um campo semântico mais vasto que o nosso «cego»: ‘oculis captus’ (Virg.), ‘sensu oculorum carere’ (Cic.), ‘oculis carere’ (Cic.). O mesmo obje(c)tivo cumpre o nosso termo «invisual», que ganhou raízes, apesar das críticas, e aí está a atestar a dinâmica da língua e a criatividade dos seus falantes. Em relação ao nosso antropónimo «Cecília», informa José Pedro Machado, na obra já referida, que o mesmo provém do latim ‘Cæcilĭa’, feminino de ‘Cæcilĭus’, e remete para «Cecílio». Sobre este termo, esclarece: «Cecílio, m. Do lat. ‘Cæcilĭu-’, der. do adj. ‘cæcus’, porque era “cego” o progenitor da ‘gens’ Cecília.» Parece fora de causa a relação etimológica entre ‘cæcus’ e ‘Cæcilĭus’: Meillet, na obra de referência já indicada, também a abona. Em suma, não é correcto dizer-se que «Cecília» significa «ceguinha» ou que provém de um termo latino com tal significado. O que se pode afirmar é que o masculino de «Cecília», ou seja, «Cecílio» (pouco frequente em português) tem como étimo um vocábulo latino (‘Cæcilĭus’) etimologicamente relacionado com ‘cæcus’, que quer dizer «cego». Assim, salvamos a honra de todas as mulheres baptizadas com este belo nome.