DÚVIDAS

A pronúncia de es- e ex- + consoante

Conheço bem as diferentes realizações do prefixo ex- em Portugal, que dependem do som posterior (vogal, consoante surda ou sonora) e também da região (centro-setentrional/resto do país). Quanto ao Brasil, encontrei algumas informações contraditórias. Parece que êx-/ex- seguido de vogal é pronunciado normalmente [éz]/[ez] (êxito/exótico) (sem ditongo à diferença de Portugal). Quando seguido de consoante surda, pronuncia-se [és]/[es] (êxtase/expor), embora em posição átona se admita também a pronúncia [is] (expor). Pelos vistos no Brasil não se produz a ditongação na pronúncia deste prefixo. É assim em todos os casos? Qual seria no Brasil a realização padrão de ex- seguido de consoante sonora em palavras como ex-ministro? Seria [ez]/[iz]? Se for assim, não existe no Brasil, como em Portugal — estou a pensar sobretudo no Rio de Janeiro —, a realização com palatal surda (como o "ch" de chama) ou sonora (como o "j") para ex-/êx- quando seguido de consoante surda ou sonora, respectivamente?

Obrigadíssimo pela vossa resposta e os meus parabéns pela web.

Resposta

A pronúncia de /e/ em começo absoluto de palavra tem oscilações quer em português europeu (PE) quer em português do Brasil (PB). Tais oscilações não parecem ser as mesmas nas duas variedades. Irei primeiro referir-me à pronúncia desta vogal tal como vem descrita em dicionários de PE, para depois abordar este caso no contexto do PB.

I. Em PE

Na perspectiva normativa, diz-se que a letra e é geralmente pronunciada [i] (cf. Teyssier 1989: 28); exemplos:

(1) elefante = [i]lefante

(2) enorme = [i]norme

(3) herdar = [i]rdar

(4) ermida = [i]rmida

Não obstante, do ponto de vista descritivo, assinala-se certa variação da vogal «por se encontrar em início absoluto de palavra» (cf. Mateus et al. 2008: 1014); daí formas como [e]rmida.

Mas há casos particulares; são eles:

1.1. O e inicial seguido de l pronuncia-se aberto (símbolo fonético [ɛ]; cf. Mateus e Andrade, 200: 58): Elvira = [ɛ]lvira, Eldorado/eldorado= [ɛ]ldorado, elvense= [ɛ]lvense.

1.2. Certos ee átonos em início absoluto de palavra são pronunciados como [e] («e fechado»), «em algumas palavras eruditas para evitar as ambiguidades» (Teyssier, 1989: 29):

(5) emigrar = [e]migrar (cf. imigrar)

1.3. Em certas palavras eruditas, geralmente formadas com radicais de origem grega, ocorre um e aberto ([ɛ]), segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa (DLPC), e Grande Dicionário da Língua Portuguesa (GDLP):

(6) etnologia = [ɛ]tnologia (?[i]tnologia)

(7) etnografia: [ɛ]tnografia (?[i]tnografia)

As formas interrogadas são variantes que, não sendo impossíveis, me parecem esporádicas ou minoritárias.

1.4. Na sequência es + consoante (p. ex., estado, esperar, escola), a vogal nem sempre é pronunciada, sobretudo na fala rápida e nos registos menos formais, como nos seguintes exemplos (o símbolo fonético [ʃ] representa o som inicial de chave e xícara):

(8) estado = [ʃ]tado

(9) esperar = [ʃ]perar

(10) escola = [ʃ]cola

No caso de estas palavras serem precedidas por uma palavra acabada em s (por exemplo, os, plural do artigo definido masculino), recomenda-se que a ligação se faça com a presença da vogal inicial. Esta vogal pode ser pronunciada como [i] ou como e mudo, ou seja, como o e da preposição de, cujo símbolo fonético é [ɨ].

(11) «os Estados Unidos» = [uziʃ]tados Unidos (mais corrente no Norte) ~ [uzɨʃ]tados Unidos (mais corrente no resto do País)

Há, pois, quem desaconselhe a pronúncia “[uʃ]tados Unidos”.

1.5. A sequência ex + consoante pode ter duas pronúncias (ver Teyssier, 1989: 28):

a) a mesma que es + consoante, isto é, com vogal [i] inicial, sujeita a apagamento, como em expor = [iʃ]por ~ [ʃ]por

b) ou pronunciando ex com ditongo, a soar "eis" (transcrição fonética [ɐjʃ]), como expor = [ɐjʃ]por

Teyssier (ibidem) considera que a opção por a) ou b) não é indiferente: a primeira é característica do registo normal; a segunda, de um registo mais enfático. Os dicionários portugueses que incluem transcrição fonética dividem-se quanto à representação de ex + consoante:, o Dicionário do Português Básico (DPB), de Mário Vilela, só indica a forma com [ɐjʃ]; o GDLP, da Porto Editora, mostra quer essa pronúncia ditongada quer a que tem um [i] que pode apagar-se (excessivo: [ɐjʃsɨsivu] ~ [(i)jʃsɨsivu]); finalmente,  o DLPC apresenta a transcrição de uma pronúncia com e mudo (símbolo fonético [ɨ]), seguida da já referida pronúncia ditongada. Note-se, porém, que, a pronúncia [ɨ], proposta pelo DLPC, pressupõe a pronúncia com [i], sendo desta uma variante que ocorre na ligação fonética de palavras (ver exemplo 11). Por conseguinte, julgo que teria sido preferível o DLPC ter transcrito um [i] em lugar de um [ɨ] (ver também Mateus e Andrade, 2000: 58).

De qualquer modo, é possível concluir que a pronúncia com ditongo tem legitimidade, pelo menos, no plano do uso, visto reunir o consenso dos três dicionários consultados. A pronúncia com [i] é também legítima, porque corresponde à tendência geral de articulação do e inicial (ver acima, ponto 1).

De referir por último que a pronúncia da vogal no prefixo ex- em PE é sempre "ei" ([ɐj]), isto é, com ditongo: ex-aluno, [ɐjzɐlunu]; ex-cônjuge, [ɐjʃkõƷuƷɨ] (cf. DLPC e GDLP).

1.6. Quando a letra e em início absoluto de palavra representa uma vogal tónica, a pronúncia varia em função da etimologia e de certos condicionalismos fonéticos:

(12) erro = [e]rro (e fechado)

(14) erva = [ɛ]rva (e aberto)

São casos particulares os de êxito e êxodo, palavras que aparentemente deveriam pronunciar-se com [e] na primeira sílaba. Contudo, o DLPC admite que o e inicial se pronuncie de duas maneiras:

(15) êxito = [ɐj]xito ~ [e]xito

(16) êxodo = [ɐj]xodo ~ [e]xodo

O GDLP só indica a pronúncia com ditongo.1

II. Em PB

Como já tenho dito noutras respostas, não conheço dicionários brasileiros que apresentem transcrição fonética da pronúncia normativa de cada palavra. No entanto, sobre o assunto, sei de um estudo que pode dar algumas pistas, da autoria de Antenor Nascentes (1886-1972) e inserido na introdução à edição brasileira (1958) do Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa, de Caldas Aulete.

Antenor Nascentes considera que a «vogal oral e» pode ter três timbres: aberto, fechado e reduzido (pág. XVI). Se acerca dos termos «e aberto» e «e fechado», não há dúvidas, porque ainda são hoje correntes, já em relação a «e reduzido», Antenor Nascentes não deixa explícita a descrição da vogal. Depreende-se, contudo, que se trata de um [i] em posição átona, visto o filólogo facultar exemplos em que a vogal está nessa posição (bote, pale, perigo, menino, feliz; ibidem) e sabermos que, na variedade brasileira, a letra e corresponde ao som [i] em sílaba final átona.

Passando agora à pronúncia da letra e em início de palavra, aquele filólogo e gramático (idem) preceitua o seguinte (ibidem):

«[o e reduzido] aparece em sílabas iniciais: perigo, menino, feliz, principalmente nas sílabas átonas em, en, es, ex.: embeber, encanto, estar, exclamar. A pronúncia alfabética, com e fechado, infelizmente é disseminada pela escola primária.»

Nesta passagem, vemos que Nascentes considera que a pronúncia normal de es- e ex- seguidos de consoante é com [i] inicial, ao mesmo tempo que regista uma pronúncia que não aprova, a "pronúncia alfabética" da letra e como [e]. Quanto à pronúncia de es e ex- seguidos de vogal, diz Nascentes:

«Em palavras como eminente, energia, esôfago, exótico, em que o m, o n, o s e o x não fazem parte da sílaba inicial, o e se apresenta fechado. Excetua-se emenda, em que é reduzido; excetuam-se as palavras de uso comum, como exame, exagêro [sic], existiu, exato, etc.»

Dito de outro modo, para o caso que interessa: geralmente o e de es- e ex- mais vogal é pronunciado como e fechado ([e]), embora existam muitas excepções, cujo e inicial é [i].

Sendo assim, creio que em PB a tendência é pronunciar exótico com e fechado átono em princípio de palavra. Sobre êxito, também é de esperar que essa vogal, também em princípio de palavra, mas tónica, tenha e fechado. Tudo isto sugere que a pronúncia ditongada de ex- + consoante (incluindo a do prefixo ex-), aceite pela norma do PE, não é característica do PB; pelo menos, pode-se afirmar que, à data de elaboração do artigo aqui citado, ou seja, 1958, tal pronúncia era ou minoritária ou inexistente em PB.

Não obstante, sabendo que no dialecto carioca existe a tendência para ditongar um e fechado seguido do som palatal [ʃ], muitas vezes associado ao sufixo de plural (três: "treis", [tɾejʃ]; mas também fez: "feis", [fejʃ]), pode-se supor que, dialectalmente, existem ocorrências da pronúncia ditongada de es- ou ex- + consoante mesmo em PB. Como não tenho atestação dessas ocorrências, fico-me pelas conjecturas. 

1 Cabe aqui referir as palavras começadas pela sequência gráfica he-, em que se nota uma maior variação da pronúncia da letra e:
a) regra geral: hebraico = [i]braico
b) [i] ~ [e]: hediondo = [i/e]diondo; herege = [i/e]rege; herói = [i/e]rói; herança = [i/e]rança
c) [e]: hedonismo, hegemonia, heleno, hematologia, hemeroteca
d) [ɛ]: hebdomadário, hecatombe, heterossexual
e) [ɛ] ~ [e]: hepatite = [ɛ/e]patite; heráldico = [ɛ/e]ráldico
f) [i] ~ [ɛ]: hemorróidas = [i/ɛ]morróidas; hemiciclo = [i/ɛ]miciclo; hermenêutica = [i/ ɛ]rmenêutica


Referências:

Mateus, M. H. M., et al. Gramática da Língua Portuguesa, Lisboa: Editorial Caminho
Mateus, M. H. M., e d’Andrade, E. 2000. The Phonology of Portuguese, Oxford: Oxford University Press
Teyssier, P. 1989. Manual de Língua Portuguesa (Portugal–Brasil), Coimbra, Coimbra Editora 

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