Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora
O fenómeno televisivo denominado <i>dorama</i>
Do Oriente para o Ocidente

O fenómeno do dorama está a conquistar o público brasileiro, a tal ponto que o substantivo masculino foi incluído no vocabulário da Academia Brasileira de Letras. A este propósito, a consultora Sara Mourato fala sobre este substantivo: a sua origem e a prevalência de uso no espaço lusófono. 

Celebrar o <i>cardioversário</i> e o <i>mesversário</i>
Novos conceitos

A propósito de declarações do cantor português Salvador Sobral, em que refere ter comemoorado o seu sexto cardioversário, a consultora Sara Mourato reflete acerca da construção deste neologismo, assim como de um outro, provável fonte de inspiração para o cantor português: mesversário.

Pergunta:

Gostaria de saber qual é o erro que esta frase tem e como posso corrigi-lo:

«Este filme mostra-nos que devemos ter convicção naquilo na qual acreditamos.»

Resposta:

O pronome relativo «o/a qual» não pode ter como antecedente os pronomes demonstrativos invariáveis.1

A frase está, portanto, incorreta, e o erro reside na utilização inadequada da locução pronominal relativa a qual, a introduzir a oração subordinada restritiva. O correto é, antes:

(1) «Este filme mostra-nos que devemos ter convicção naquilo em que acreditamos.»

Mesmo que o/a qual fosse possível na frase acima, a concordância em género e número desta locução com o seu antecedente obrigaria à ocorrência de o qual, porque o antecedente aquilo, pronome demonstrativo invariável, desencadeia a concordância no género masculino. É o que acontece quando, em frases corretas, o/a qual tem um nome por antecedente:

(2) Temos esperança num ideal político exigente, no qual acreditamos.

 

1 A inaceitabilidade da construção talvez se deva ao facto de o qual precisar de um antecedente com valor referencial [+específico], que não é preenchido pelo pronome aquilo, cuja referência é vaga, ao contrário de aquele, que não ocasiona incompatibilidade: «aquele no qual acreditamos». Talvez também por esta razão se use «aquilo em que acreditamos», porque que aceita antecedentes com todos os valores. Agradece-se a sugestão desta hipótese à consultora Carla Marques (comunicação pessoal).

Pergunta:

Verifiquei que, em muitas decisões judiciais, os juízes começam a parte dispositiva com «por todo o exposto»; noutras, com «por tudo o exposto». Exemplo: «por todo/tudo o exposto, revoga-se a decisão recorrida».

Alguma destas formas é preferível à outra? Muito obrigado.

Resposta:

De facto, a forma correta é «por todo o exposto». 

A justificação para considerar esta forma correta baseia-se na interpretação da estrutura e do significado pretendido com a expressão. Assim:

1. Exposto tem registo como substantivo, sinónimo de exposição (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa); e ocorre a expressão «pelo exposto», como justificação de um argumento ou uma decisão (cf. Corpus do Português)

2. Em «todo o exposto», todo é um pronome indefinido adjunto1 que modifica o nome exposto.

Acontece que tudo é um pronome indefinido absoluto, isto é, ocorre sem associar-se a um substantivo. Assim, não há como considerar «por tudo o exposto» correto.2

No entanto, vale ressaltar que existe uma expressão consagrada pelo uso que poderia corroborar o que foi mencionado anteriormente: «tudo o resto». Com origem no galicismo tout le rest, esta expressão acabou por se integrar plenamente na língua portuguesa ao longo do tempo, o que não acontece com «tudo o exposto». 

 

1 Os pronomes indefinidos adjuntos associam-se a substantivos, ou seja, nomes. No quadro da terminologia gramatical usada em Portugal, no ensino não universitário, todo é um quantificador quando modifica um nome.

2

Pergunta:

Gostava de saber qual é a forma correta na conjugação de querer (quis) + o/a/as/os.

É frequentemente advertido que, no Português europeu, o verbo querer quando combinado com pronomes oblíquos na segunda e terceira pessoa pode adquirir as formas quere-o/requere-a. Fiquei, então, na dúvida se algo parecido acontece ou não nas suas respetivas formas do pretérito quis. Está correto «ele qui-lo» em Portugal?

Muito obrigado desde já por qualquer esclarecimento desta pequena dúvida!

Resposta:

A forma qui-lo está correta e é a única possível quando a quis se pospõe o pronome o/a.

Conjugado pronominalmente, o verbo querer na primeira e terceira pessoas do singular pretérito perfeito do indicativo, i. e., na forma quis, tem como formas corretas qui-lo e qui-la, quando seguido pelo pronome átono o/a. Por exemplo:

(1) «A Joana quis o bolo de chocolate».

Em (1), a substituição do complemento direto «o bolo de chocolate» por um pronome com a mesma função resulta em:

(2) «A Joana qui-lo». 

Apesar de possivelmente causar estranheza, pela homonímia com o nome quilo, em (2) segue-se a regra prevista: o verbo termina em -s e, por isso, este -s é omitido e ao pronome do complemento direto -o/-a/-os/-as acrescenta-se um l (o mesmo procedimento ocorre com verbos finalizados em -r -z).

Apresenta-se um exemplo adicional retirado de um livro de Eça de Queirós, O Primo Basílio (in Corpus do Português):

(3) «[...] mando-te essa rosinha, e peço-te que faças o que fizeste à outra, trazê-la no seio, porque é tão bom quando vens assim, sentir-te o peitinho perfumado. A Tia Vitória, sufocada, qui-la mostrar à sua velha amiga, a Pedra, a Pedra gorda, que estava na saleta.».

Relativamente à conjugação da terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo querer1 («ele quer»),&#x...