Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Escrevo-lhes porque gostaria de saber qual é a diferença entre «passar-me de todo» («esquecer-me de alguma coisa por completo») e «passar-me de tudo».

Porque não seria neste caso «passar-me de tudo»? 

Resposta:

De facto, tudo indica a totalidade, o conjunto das coisas, daí a consulente considerar que «passar-se de tudo» seria uma expressão aceitável, sendo sinónima de «esquecer-se completamente/totalmente de algo» (completamente e totalmente são advérbios que compartilham relação de sinonímia).

No entanto, «de tudo» é uma expressão com valor partitivo, i.e., é uma construção que indica a relação parcial ou total com um todo: «comeu de tudo», «viu de tudo», «comprou de tudo» (em espanhol o que ocorre é «lo hay de todo» quando, em português, temos «há de tudo»).

Por outro lado, o que se encontra atestado nos dicionários é a locução «de todo» como sinónima de completamente, totalmente (ou ainda «de maneira nenhuma» – exemplo: «não estou de todo disponível para esta conversa»– Priberam). Assim, a expressão corrente é «passar-me de todo». 

Note-se que, além de significar «esquecer-me completamente», «passar-me de todo» significa também «ficar extremamente irritado ou chateado, a ponto de agir de modo irracional». 

Deixa-se ainda outra nota para a expressão, com significado díspar, que é «andar/estar de todo». Aqui, o seu significado é «andar ou estar particularmente insuportável; andar ou estar muito cansado» (Dicionário da Língua Portuguesa, Academia das Ciências de Lisboa).

Pergunta:

Os pronomes pessoais do caso oblíquo átono não vêm precedidos de preposição, os pronomes lhe e lhes são átonos, porém eles podem ser usados como objeto indireto que vem precedido de preposição.

Não entendi isso.

Vocês poderiam me ajudar?

Obrigado.

Resposta:

Os pronomes pessoais oblíquos átonos não vêm precedidos de preposição, como se pode ver nos exemplos:

(1) «Ela nos viu no cinema» / «Ela viu-nos no cinema» – nos exerce a função de objeto/complemento direto, na frase;

(2) «Ela nos explicou a importância do projeto» / «Ela explicou-nos a importância do projeto» – nos exerce a função de objeto/complemento indireto, na frase. 

(3) «A criança o deu [o brinquedo] à mãe» / «A criança deu-o [o brinquedo] à mãe» – o exerce a função de objeto/complemento direto, na frase. 

O mesmo acontece com os pronomes lhelhes, i.e., não vêm precedidos de preposição quando exercem a função de objeto/complemento indireto. Veja-se:

(4) «A criança lhe deu o brinquedo» / «A criança deu-lhe o brinquedo». 

O que acontece, sim, é que o lhe ou lhes  substituem o objeto/complemento de um verbo transitivo indireto que é, aqui sim, precedido de preposição, nomeadamente a ou para, e o mesmo sucede com todos os pronomes pessoais do objeto/complemento indireto:

(5) «A criança deu o brinquedo à mãe».

Em (5), o objeto/complemento indireto do verbo dar é «à mãe», objeto/complemento este antecedido da preposição a. A sua substituição pelo pronome pessoal oblíquo átono lhe faz desaparecer esta preposição. 

(6) «A criança deu o brinquedo à Joana e a mim» = «A criança nos deu o brinquedo» / «A criança deu-nos o brinquedo».

Dar <i>nega</i> a Elon Musk
Um uso questionável em textos noticiosos

Será aceitável a expressão «dar nega» num texto noticioso? A esta pergunta tenta responder a consultora Sara Mourato, a propósito do uso da expressão numa notícia do site Executive Digest.

Pergunta:

Podemos dizer "profissionais educativos" quando nos referirmos ao grupo de pessoas implicadas profissionalmente na área da educação (professores, educadores, técnicos dos centros educativos)?

Soa-me muito estranho porque creio que o adjetivo "educativo" não deve servir para caracterizar o profissional que trabalha na área, mas sim o campo em que atua (da educação). Porém, gostaria de confirmar...

Obrigada, desde já, por esclarecerem.

Resposta:

Atendendo ao significado do adjetivo educativo, «que tem por objetivo formar, instruir, desenvolver capacidades; que concorre para a educação» (Dicionário da Língua Portuguesa, Academia das Ciências de Lisboa), não há nada de errado na expressão «profissional educativo». O que se infere é que este profissional é alguém que contribui para a educação, como um professor, um educador, um técnico de ação educativa, etc

Mais comum será, e daí talvez a estranheza, referirmo-nos a estas pessoas como «profissional da área da educação», mas esta é, no fundo,  a forma mais extensa de nos referirmos a um «profissional educativo». Ainda, é também comum a expressão, com o mesmo significado, de «agente educativo». 

Pergunta:

Nas construções:

«A psiquiatria, ou antes, a psicanálise...»

«É essa a nossa, ou antes, a minha hipótese...»

«Tudo isso será o passado, ou antes, já é o passado.»

a virgulação está correta?

Ou não deveria grafar-se, ao invés:

«A psiquiatria, ou, antes, a psicanálise...»

«É essa a nossa, ou, antes, a minha hipótese...»

«Tudo isso será o passado, ou, antes, já é o passado.»

Muito obrigado.

Resposta:

«Ou antes» constitui uma locução, cujo significado é «mais precisamente; ou melhor» (Dicionário Houaiss).

Por ser uma locução com significado próprio, não deve ter os seus elementos separados por vírgula, como são exemplo, também, as locuções «ou seja» e «isto é». Assim, o correto será destacá-la com uma vírgula à esquerda e outra à direita:

(1) «A psiquiatria, ou antes, a psicanálise...»;

(2) «É essa a nossa, ou antes, a minha hipótese...»;

(3) «Tudo isso será o passado, ou antes, já é o passado».

Repare-se que, no dicionário em referência, a locução surge entre vírgulas – «viajaram para Goiás, ou antes, para Anápolis». De facto, e de acordo com Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa (pág. 519), uma partícula ou locução de explicação (como aqui é o caso), correção, continuação, conclusão e concessão, deve surgir entre vírgulas.