Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Tenho dúvidas:

1) no contexto das habilidades manuais, qual seria a grafia correta: "dichavar"/"dechavar"/"dixavar"/"dexavar"?

2) dada a polissemia do verbo, será que tem jeito certo de escrever?

Os dicionários esqueceram essa palavra. Somente o ligeiro dicionarioinformal.com.br discorre sobre ela.

Aliás:

3) Será uma só, ou são várias palavras?

Muito grato.

Resposta:

Nos dicionários a que temos acesso, o único que atesta os vários verbos é efetivamente o Dicionário Informal (em linha), tal como o consulente referiu. Neste dicionário não há referência à etimologia das formas em questão, que têm todas o significado de «omitir, tornar discreto, desfazer» – à exceção de dixavar, a que também se atribui a aceção de «agredir, realizar algo digno de admiração» –, pelo que se torna difícil precisar a grafia correta. Assim, à falta de linhas orientadoras que nos ajudem a descortinar qual a grafia a adotar por este verbo, arriscamo-nos a dizer que se pode usar qualquer uma das quatro atestadas no Dicionário Informal.

Note-se que este verbo parece ser relativamente recente e usado no Brasil, em contextos de marginalidade social, nomeadamente quando se refere o ato de desfazer uma dose de maconha, ou seja, haxixe  («dixavar/dichavar/dexavar/dechavar maconha»), o que leva a prever que ocorra somente no discurso oral ou em documentos escritos que reproduzam a oralidade.

Pergunta:

Devemos considerar hipo- um prefixo, ou um radical? Sendo prefixo, todas as palavras que o integrem serão derivadas? Sendo radical, as palavras que o integram são compostas? Ou hipo-, significando «cavalo», é radical e, significando «menor», é prefixo, decorrendo daí as devidas consequências?

Obrigada.

Resposta:

A forma hipo- ocorre como prefixo ou como radical, ambos de origem grega.

Vejamos: se hipo- for associado a um substantivo com o sentido de «posição inferior, escassez», estamos perante uma palavra derivada por prefixação (cf. Celso Cunha e Lindley Cintra, 1984, Nova Gramática do Português Contemporâneo, p. 85-89); ex.: hipotensão («pressão inferior à normal, especialmente no interior de um órgão do corpo ou num sistema orgânico», Dicionário Houaiss). Por outro lado, se for aplicado no sentido de «cavalo», hipo- é um radical, ou seja, um elemento de palavra composta (Cunha e Cintra, 1984, p. 111); ex.: hipódromo («local com pistas próprias para corridas de cavalos e tribunas para o público», idem).1

1 O consulente Giovanni Saponaro enviou a seguinte achega, que muito se agradece: «Em relação [a esta resposta], talvez seja útil mencionar também a diferente etimologia: hipo- no sentido de «inferior» vem do grego ὑπο- (hypo-), enquanto hipo- no sentido de «cavalo» vem do grego ἵππος (hippos). As diferenças nas duas palavras em grego (letra ípsilon inicial e letra pi simples no primeiro caso; letra iota inicial e letras pi duplas no segundo) são anuladas na grafia portuguesa, que se estabeleceu como hipo- em ambos os casos. O mesmo não aconteceu em outras línguas, por exemplo em inglês, em que se escreve hypotension vs. hippodrome».

Cf. ...

Pergunta:

A locução exclamatória «bem feito!» (usada ironicamente quando sucede mal a alguém que tem culpa) poderá também admitir a forma «bem feita!», que frequentemente também se ouve?

Resposta:

Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, a locução exclamativa «bem feito!» (provavelmente de «isso é bem feito!») é «usada para indicar que, na opinião do locutor, o mal que acontece é merecido», ou seja, que «exprime satisfação pelo mal sucedido a alguém», e admite, efetivamente, a forma «bem feita!», com o mesmo significado (provavelmente de «essa coisa é bem feita»; cf. «hás de pagá-las», no sentido de «hás de receber castigo/retaliação», em que o feminino parece pressupor uma palavra do mesmo género: «contas», «culpas»). 

Note-se que as exclamações são características do discurso oral. Podem surgir no discurso escrito caso se verifique uma reprodução do discurso oral.

Pergunta:

Estou a fazer um trabalho que exige identificar a etimologia do termo octógono e do seu equivalente inglês octagon. De acordo com José Pedro Machado, no seu Dicionário Etimológico, o nome octógono deriva do grego októgonos pelo latim octógonos. Entre os dicionários da língua portuguesa que consultei, uns coincidem com J. P. Machado, outros apontam para oktágonos e octogonos, respetivamente. As fontes em língua inglesa que consultei remetem o étimo da palavra octagon para o grego oktágonos, pelo latim octagonos, validando assim a presença do a no termo inglês, que, por sinal, também está presente no catalão, no italiano, e, no caso do castelhano, a Real Academia Española admite as duas formas ortográficas. Qual é realmente a origem desta palavra?

Resposta:

O substantivo em questão aceita, à semelhança da língua castelhana, duas grafias: octógono e octágono. Esta dupla morfologia deve-se ao facto de se tratar de um substantivo que surgiu no contexto científico a partir do século XVI e, como tal, pode envolver elementos tanto do grego como do latim. Assim, temos por um lado a forma octágono, que tem uma formação homogénea, sendo que os seus dois elementos mórficos são de origem grega. Por outro lado, temos a forma octógono, que é um substantivo de formação híbrida, ou seja, o primeiro elemento, octo-, tem origem no latim, e o segundo elemento mórfico-gono, tem origem no grego (ver -gono no Dicionário Houaiss).

Refira-se que octágono parece ser menos usado que octógono, visto os dicionários remeterem a forma constituída pelos dois elementos gregos para a forma híbrida, latino-grega (cf. Dicionário Houaiss).

Pergunta:

Muitos substantivos da língua portuguesa são formados por derivação regressiva, ou seja, derivados de verbos. Convívio não seria uma derivação do verbo conviver?

Resposta:

Ao contrário daquilo que se possa supor, do ponto de vista da língua portuguesa contemporânea, o substantivo convívio não é formado por derivação regressiva do verbo conviver. Numa análise diacrónica, verificamos que este substantivo é uma adaptação do vocábulo latino convivĭum, ĭi, «participação em banquete, convidado», derivado do verbo latino convīvi, is, vixi, victum, ĕre, que significa «viver com», e que a derivação do mesmo ocorreu ainda em língua latina, sendo que convīvi é formado por derivação regressiva do verbo vivĕre (Dicionário Eletrônico Houaiss, 2001).