Sara Mourato - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara Mourato
Sara Mourato
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Licenciada em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e mestre em Língua e Cultura Portuguesa – PLE/PL2 pela mesma instituição. Com pós-graduação em Edição de Texto pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, trabalha na área da revisão de texto. Exerce ainda funções como leitora no ISCTE e como revisora e editora do Ciberdúvidas.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Não localizo nos dicionários a palavra "prototipação", que corresponderia à ação de "prototipar", verbo que, apesar de ser considerado como válido pelo Ciberdúvidas da Língua Portuguesa, também não encontro nos dicionários.

Os dicionários apresentam "prototipagem" para significar a ação de "prototipar" ou "prototipificar".

A pegunta é: "prototipação" é uma palavra aceita na língua portuguesa, ou somente "protipagem" deve ser usada, e porquê?

Resposta:

Nos dicionários consultados, o único substantivo atestado com o sentido de «criação; fabrico de protótipos» é prototipagem (dicionário da Porto Editora, em linha). No entanto, verificamos que os sufixos -agem (do latim -agine) e -ação (do latim -tione), que se agregam ao radical do verbo prototipar (cf. idem) para formarem estes substantivos, têm o mesmo significado: «ação; resultado de ação» (Dicionário Eletrónico Aurélio). Logo, podemos assumir que prototipação, tal como prototipagem, é um substantivo adequado para descrever «criação; fabrico de protótipos».

Pergunta:

Qual a origem da expressão «homem de mão»?

Resposta:

A expressão em apreço deve ter origem francesa, pois encontra paralelo no francês «homme de main»1, de que parece tradução literal. Com «homem de mão» refere-se um indivíduo que faz algo repreensível ou ilegal ao serviço de alguém que fica na sombra, tal como um fantoche ou uma marioneta é manipulado por um bonecreiro. É o caso do seguinte exemplo, em que se menciona um homem que atua a mando de outrem:

1) «Em El Sicario Room 164, Gianfranco Rosi filma a confissão de um homem de mão dos narcotraficantes mexicanos» (página de tradução francês-português do Proz.com).

Note-se, porém, que a expressão pode marcar no enunciado não uma acusação de crime, mas antes uma atitude de desconfiança ou suspeita em torno dos atores de uma dada situação referida em discurso. É o que acontece por exemplo no título de uma notícia do jornal português Correio da Manhã, datada de 30/11/2004):

2) «Chirac coloca homem de mão nas finanças.»

Em 2, «homem de mão» refere um político cuja conduta pode nem parecer tão repreensível assim, mas sobre o qual recai a ideia de seguir os ditames de outra pessoa.

1Trésor de la Langue Française Informatisé, s. v. homme: «Homme de main. Celui qui est au service d´autrui pour exécuter des tâches généralement répréhensibles ou illégales. Bien dirigé, il peut servir d´homme de main pour toutes les besognes (Sartre, Mains sales, 1948, 1er tabl., 3, p. 29). Tradução livr...

Pergunta:

Qual o significado da palavra morato?

Para além da origem do latim moratus, há indicadores de o termo como adjectivo significar «bem organizado». Tem aceitabilidade?

Resposta:

Aceita-se, efetivamente, o uso do adjetivo morato no sentido de «bem organizado». Este adjetivo, com origem na palavra latina moratus («adaptado ao carácter de uma pessoa»), está dicionarizado com o significado de  «bem organizado; em que se descrevem bem os caracteres» (Figueiredo, C., Dicionário da Língua Portuguesa, Bertrand Editora, 1973). O Dicionário Priberam da Língua Portuguesa assinala como característica deste adjetivo o seu pouco uso.

Homónimo do vocábulo em questão mas com diferente etimologia é o apelido (ou sobrenome) Morato, ao qual José Pedro Machado (Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa) atribui origem italiana – de morato, «moreno, fusco», por sua vez derivado de mora, «amora». A forma Mourato será uma variante surgida por influência de mouro (idem).

Pergunta:

Trata-se não de uma pergunta, mas de um comentário relativo à resposta n.º 16831.

Independentemente de como se escreve em português, harpia NÃO pode ter a sílaba tônica no i (“harpía”), porque vem do grego ἅρπυιαι, que transliterado é Hárpuia, Ou seja, com a tônica na primeira silaba. Essa coisa de chamarem o bicho de “harpía” (e não “hárpia”, como é o correto) vem da subserviência aos documentários de língua inglesa, onde, efetivamente, se deforma a palavra, retirando da primeira sílaba o elemento tônico e transferindo para a segunda, produzindo essa deformidade que é “harpía”(!). Tanto é assim, que, antes desses documentários mal traduzidos, ninguém chamava de “harpía” o nosso gavião de penacho.

Para se conhecer realmente a palavra, o fundamental é ir à raiz da mesma. No caso, o grego.

Então, amigos, não é “harpía”, é hárpia.

Resposta:

Mesmo não se tratando de uma pergunta, o Ciberdúvidas dá o seu parecer relativamente ao comentário feito.

A acentuação da palavra harpia em português, com acento tónico no -i-, deve-se não à palavra grega original, Hárpuia, as, em que a sílaba tónica é hár-, mas, sim, à forma intermédia latina harpyiae, arum, em que a sílaba tónica é py- (cf. Dicionário Gaffiot, em francês). Verifica-se, portanto, que, quando foi adaptada pelo latim, a palavra sofreu alterações a nível da acentuação; na adaptação ao português, as únicas alterações surgiram só no sentido de a simplificar, pois o –yi- (harpyia) passou a –i- (harpia) em português, mantendo assim a acentuação da palavra latina (Cf. Dicionário Houaiss).

Acrescente-se que a forma harpia não pode ser resultado da influência do inglês, porque, nesta língua, a palavra correspondente – harpy – tem acento tónico na primeira sílaba, como acontece em grego antigo.

Por fim, recorde-se o que significa harpia: «1. Monstro alado com rosto de mulher, corpo de abutre, unhas em forma de garra, que personificava as tempestades e a morte. 2. [Figurado]  Pessoa que vive de extorsões. 3. Mulher ávida e má. 4. [Zoologia]  Espécie de águia da América.» harpia, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013 [consultado em 9-10-2014].

Pergunta:

Na Idade Média, filhar significava roubar, tirar qualquer coisa a alguém. Em relação a uma tradução que estou a fazer de um livro de história de dinamarquês para português, e dado o contexto, "apetece-me" usar o termo filhar, uma vez que o enredo decorre na Idade Média. Será que me posso permitir o uso de filhar, mesmo que hoje em dia não conste dos dicionários?

Melhores cumprimentos.

Resposta:

Filhar é um verbo classificado como um arcaísmo, sendo atualmente pouco ou nada usado. No entanto, uma vez que os arcaísmos são uma forma de enriquecimento linguístico, não há porque não usar este verbo no sentido de «tomar por força, agarrar, segurar, filar; tomar, colher, apanhar; receber, tomar conta de» (cf. Dicionário Houaiss).

Note-se que a origem deste verbo é controversa. Certos autores consideram que «seria o mesmo [que] filhar (formação vernacular de filho + -ar), com precedência documental na acepção de «ter como filho, adotar como seu, defender», que teria passado por evolução de sentido circular: «chamar a si alguém como filho»: «chamar a si algo»: «pegar, tomar para si» (Dicionário Houaiss). Há quem lhe atribua origem diferente de filhar (no sentido de «perfilhar») e o associe a filar, que significa «agarrar, segurar fortemente» e cuja palatização (-l- > -lh-) terá origem no latim popular piliare, que, por sua vez, vem do latim clássico pìlo, as, avi, atum, are, «apoiar, esteiar, segurar, sustentar com força» e, por extensão, «pilhar, roubar, espoliar, despojar» (idem).