Sara de Almeida Leite - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Sara de Almeida Leite
Sara de Almeida Leite
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Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português e Inglês, pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa; mestre em Estudos Anglo-Portugueses; doutorada em Estudos Portugueses, especialidade de Ensino do Português; docente do ensino superior politécnico; colaboradora dos programas da RDP Páginas de Português (Antena 2) e Língua de Todos (RDP África). Autora, entre outras obras, do livro Indicações Práticas para a Organização e Apresentação de Trabalhos Escritos e Comunicações Orais ;e coautora dos livros SOS Língua Portuguesa, Quem Tem Medo da Língua Portuguesa, Gramática Descomplicada e Pares Difíceis da Língua Portuguesa e Mais Pares Difíceis da Língua Portuguesa.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Antes de mais nada, parabéns pelo site!

Gostaria de começar por referir duas palavras que encontrei em livros da editora Saída de Emergência: "dracares" e "escaldos". Fiquei chocado com estas grafias para palavras que, a mim, me parecem ser muito mais naturalmente escritas (como, aliás, sempre as escrevi,) drakars e skalds. Por diversos motivos: primeiro, são termos que procuram evocar um determinado ambiente (no caso, os livros eram de Fantasia Medieval) que "dracares" e "escaldos" falham em conseguir evocar. Segundo, chega a ser difícil até mesmo reconhecer o que significam estas palavras (admito que demorei vários segundos a aperceber-me do que queria o tradutor dizer com a palavra «escaldos»). Terceiro, sendo palavras tão específicas, faria sentido grafá-las de um modo a que se torne fácil descobrir o seu significado – e claramente haverá mais pessoas a saber o que é um skald do que um "escaldo". Por fim, não são palavras completamente assimiladas na língua portuguesa, sendo usadas com pouca frequência e quase sempre em contextos específicos (trabalhos especializados ou de Fantasia).

Dados estes pontos, não faria mais sentido o uso do termo estrangeiro? Não estaremos a chegar ao ponto em que procuramos aportuguesar com uma frequência para lá do aceitável? Vem-me à memória o assustador «blecaute» que eu vi num site da Internet — ou deveria dizer, num «sítio»? Dito isto, fico na dúvida sobre se será correcto utilizar o termo original após a oficialização da norma portuguesa: escrever dossier em vez de «dossiê», palmier em vez de «palmiê», e, já agora, blackout em vez de «blecaute». A dúvida mantém-se no caso da pronúncia: sou «obrigado», digamos assim, a pronunciar /dɾɐkaɾɨʃ/ em vez de /dɹɑkɑɹz/?

Resposta:

A sua argumentação a favor da manutenção da forma original dos estrangeirismos drakars e skalds parece-me válida. Todos sabemos que há estrangeirismos difíceis de adaptar (T-shirt, surf, download, abat-jour...) e outros que podem ser aportuguesados com naturalidade, sem que a sua forma cause estranheza (batom, futebol, hambúrguer, blogue).

Mas também existem, é certo, muitas palavras estrangeiras que suscitam reacções divergentes quando são incorporadas na nossa língua. Então, hesitamos entre dossier e dossiê, entre stress e estresse, entre Zimbabwe, Zimbabué e Zimbábue, multiplicando-se as grafias possíveis para esses termos em português. Quando assim é, pelo menos durante algum tempo, o facto de o aportuguesamento ter sido dicionarizado não nos impede, por si só, de usar a grafia original dos estrangeirismos (muitas vezes igualmente dicionarizada em português).

O normal é que seja a comunidade de falantes a decidir, gradualmente, como será fixada a forma dos termos estrangeiros que decide adoptar. E o mais natural é que as grafias menos usadas caiam em desuso e que as preferidas pelo maior número de falantes acabem por vingar. Veja-se como o aportuguesamento inicial uísque acabou por ser preterido em favor do original whisky, ao passo que a sandwich começou por ser sanduíche e acabou por ser abreviada para sandes.

Assim, no caso das adaptações "dracares" e "escaldos", é evidente que um tradutor sozinho pode muito pouco contra toda uma comunidade de falantes, se a intenção geral for manter a ...

Pergunta:

A minha questão é simples: [em Portugal] a utilização do pronome pessoal você por um aluno dirigindo-se a um professor revela falta de educação, «é feio»? Por exemplo, na frase «Você pode-me explicar novamente o trabalho?» ou «Professora, você pode chegar aqui?».

A minha pergunta deve-se ao facto de observar grande parte dos meus colegas incomodados quando tratados dessa forma e, sinceramente, não vejo razões para isso.

Provavelmente, por ter vivido muito tempo no estrangeiro, onde tirei o meu curso superior... Contudo, verifico que na televisão o uso deste pronome surge com muita frequência em debates, por exemplo, em que o entrevistador (Judite de Sousa) trata por "você" os seus entrevistados.

Grata por uma resposta.

Resposta:

É bem verdade que, apesar de ser frequentemente usada hoje em dia em Portugal, a forma de tratamento você gera reacções contraditórias, porque tem interpretações distintas. Aliás, é sintomático o modo como a expressão que está na sua origem, vossa mercê, é definida no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa: «forma de tratamento dada às pessoas que não tinham direito a senhoria; forma de tratamento de cortesia dado [sic] a pessoas de cerimónia».

Ora, por um lado, certas pessoas usam-na para interpelar cerimoniosamente alguém que  desconhecem ou que conhecem mal (para evitar tratar essas pessoas por tu) e também para se dirigirem a alguém a quem devem respeito, por exemplo os pais (ex.: «Mãe, você quer ir comigo?»). É nesse sentido que muitos alunos se dirigem aos professores usando o pronome você, a maior parte das vezes porque, no respectivo seio familiar, aprenderam que essa era a forma mais adequada para tratarem alguém com cerimónia.

Por outro lado, há quem não aceite ser interpelado por meio do pronome você, que está associado, como atestam os dicionários, ao tratamento de pessoas «de igual para igual ou de superior para inferior, a nível social, hierárquico ou etário» (Dic. da Academia das Ciências de Lisboa). Para quem encara o tratamento por você como uma falta de respeito para com a pessoa desconhecida (ou hierarquicamente superior) que se pretende interpelar, este pronome implica demasiada confiança e deveria ser substituído por «o/a senhor(a)», «o/a chefe/patrão, etc.» ou, no contexto escolar, «o/a professor(a)».

Tendo em conta as contradições aqui expostas e evidenciadas na própria pergunta (o professor diz ao aluno que usar você

Pergunta:

A palavra ciliar aparece num dicionário português como cilliary na tradução para o inglês. Mas no inglês não consegui encontrar a referida palavra.

Peço, por favor, vossa ajuda.

Obrigado.

Resposta:

A palavra ciliary, em inglês, tem apenas um l, como poderá comprovar consultando este dicionário virtual. Em português, ciliar é, segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, um termo de anatomia que tem as seguintes acepções: «que é relativo às pestanas ou cílios» (p. ex. «músculos ciliares»); «que é relativo a quaisquer filamentos ou cílios»; e «que é relativo ao sentido visual (p. ex., «corpo ciliar»). 

Disponha sempre!

Pergunta:

Como deve ser traduzida a palavra tract? Por «tratado»?

«A short piece of writing, especially on a religious or political subject, which is intended to influence other people's opinions» (dicionário de Cambridge).

Fico muito grato.

Resposta:

Tratado é um termo perfeitamente válido para traduzir tract, na acepção que o consulente apresenta, até porque a origem de ambos os termos parece ser a mesma (do latim tratactus, particípio passado do verbo tractāre). 

No entanto, existem outras palavras em português que podem traduzir tract, como por exemplo opúsculo e panfleto, pois estes termos também podem designar um texto breve divulgando uma matéria ou opinião política ou religiosa.

Pergunta:

"Prototipicalidade"? "Prototipicidade"? Outra opção? Qual a melhor tradução para "prototypicality"? Palavra utilizada, por exemplo, no seguinte título de artigo científico: «When “different” means “worse”: In-group prototypicality in changing intergroup contexts.»

Resposta:

Tendo em conta que nem “prototipicidade” nem “prototipicalidade” existem em português, e na necessidade de traduzir o conceito de prototypicality, eu escolheria o primeiro desses dois neologismos: “prototipicidade”.

A lógica é a seguinte: a base, tanto no inglês como em português, é o substantivo protótipo (prototype). O adjectivo dele derivado é prototípico (prototypical), que está atestado em português. Portanto, quando pretendemos referir-nos à qualidade daquilo que é relativo ao protótipo, ou seja, daquilo que é prototípico, devemos associar-lhe o sufixo nominal -(i)dade (presente noutros nomes derivados de adjectivos, como interioridade, objectividade, luminosidade, etc.). Assim, da junção entre prototípic(o) + -(i)dade resulta prototipicidade.

A outra possibilidade, “prototipicalidade”, parece-me menos válida, porque, sendo uma adaptação mais literal do inglês prototypicality, não se revela tão bem formada: se não existe em português o adjectivo “prototipical”, não creio ser legítimo formar, a partir dele, o nome terminado em -(i)dade.